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Leonardo Sakamoto

Nem o comando das Forças Armadas tem paciência com quem pede golpe militar

Leonardo Sakamoto

30/05/2018 00h05

Foto: Ueslei Marcelino/Reuters

Uma coisa é ter opinião. Outra é achar que a Constituição é papel higiênico e as instituições democráticas (que levamos décadas para tentar construir) são um grande vaso sanitário. E defender que seu ponto de vista seja aplicado à força, através do fuzil e do canhão, em prejuízo à liberdade e à dignidade do restante da população.

As Forças Armadas de hoje não são as mesmas do período da última ditadura, da mesma forma que os contextos nacional e internacional são outros. Seus comandantes têm confirmado que a liderança do país é e será civil, apesar de algumas declarações desastrosas que poderiam ter sido evitadas. Segundo eles, o respeito às liberdades individuais e às instituições continuará, sem intervenções ou golpes. Inclusive nesta crise causada pela incompetência do governo Temer em lidar com a greve dos caminhoneiros.

O problema é que, vira e mexe, políticos estridentes alimentam o pessoal que acha que a democracia é a titica do cavalo do bandido e vê norte-coreanos na tigela dos cereais do café da manhã, semblante de médico cubano na torrada e o mapa da Venezuela no ovo frito. Pessoas que dizem que o mal precisa ser extirpado e o bem recolocado no lugar pelos militares. E quem é o mal? Daí reside o problema: são todos aqueles eleitos como inimigos dos "homens e mulheres de bem". Na superfície dessa afirmação, há ódio. Mas se escavarmos um pouco, chegaremos ao medo e, em seguida, à completa ignorância sobre o outro e, não raro, sobre si mesmo.

Já escrevi sobre tudo isso antes, mas achei que era importante trazer a discussão aqui novamente dada a quantidade de pessoas que, sem pudor algum, estão indo às ruas pedir "intervenção militar constitucional", ou seja, golpe.

Graças à democracia, elas têm liberdade para tanto – e nós para criticá-las. Pois sinto vergonha de outros brasileiros que demandam seu direito à liberdade de expressão com o intuito de defender a volta de um período em que a liberdade de expressão não era um direito.

Lidamos com o passado como se ele tivesse automaticamente feito as pazes com o presente. Não, não fez. E o impacto de não resolvermos o nosso passado em que o Palácio do Planalto autorizou a morte de brasileiros com os quais não concordava se faz sentir no dia a dia das periferias das grandes cidades e nos grotões da zona rural, com o Estado aterrorizando, reprimindo e torturando parte da população (normalmente mais pobre) com a anuência da outra parte (quase sempre mais rica). Sim, milhões de pobres sentem no couro diariamente a herança dessa ditadura.

O mais triste é saber que muitos dentre os que pedem um golpe militar fazem isso não por desconhecer o que acontecia naquela época, mas exatamente por ter plena noção. Querem aquele período de volta, com seus paus-de-arara e cadeiras de choque, suas prisões arbitrárias e os habeas corpus transformados em lixo, suas megaobras superfaturadas e as tentativas de genocídio indígena, seus protestos que terminavam com prisões e greves finalizadas à bala, suas aposentadorias especiais para filhas de militares e seus loteamentos de cargos com amigos, seu desmatamento e seu trabalho escravo nas alturas, seu alto endividamento externo e a entrega da Amazônia a empreendimentos internacionais.

Se ficarmos apenas assistindo boquiabertos aos retrocessos sociais, ambientais, econômicos, políticos e civis, o que é um pesadelo do passado voltará a ser nosso cotidiano. Liderado por falsos "salvadores da pátria", carregados nos braços de quem está cansado de tudo o que está aí, inclusive da liberdade para procurar soluções de forma coletiva aos problemas da sociedade.

O desejo de que militares tomem as rédeas da sociedade não é a busca por ordem diante de um país desempregado, violento, corrupto, que caiu em desalento e desgosto com a falta de perspectivas de melhora e serviços públicos de má qualidade diante de altos impostos. Porque tudo isso só se resolve através de muita discussão, por vias democráticas.

Mas é a fuga da liberdade, que pode ser opressora para aqueles que não suportam serem responsáveis pelos seus próprios erros e acertos. Desejam não apenas que alguém decida por eles, o que fazer e pensar, mas também o limite da liberdade das outras pessoas. Afinal, perceber que o outro vive bem sua liberdade é opressor para quem foge de sua própria.

Como já disse aqui, diante da atual tentativa de excluir o espírito crítico dos bancos escolares, através de ações como o "Escola Sem Partido", desejo que a história daquele período continue a ser contada nas escolas até entrarem nos ossos e vísceras de nossas crianças e adolescentes a fim de que nunca esqueçam que a liberdade do qual desfrutam não foi de mão beijada. Mas custou o sangue, a carne e a saudade de muita gente.

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.