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Leonardo Sakamoto

Autônomo só no nome: Caminhoneiro é explorado por empresas de transporte

Leonardo Sakamoto

31/05/2018 03h59

Foto: Nelson Almeida/AFP

Por Vitor Araújo Filgueiras e José Dari Krein*, para o blog

Os preços dos combustíveis têm sido o foco dos debates sobre o movimento que praticamente paralisou o transporte de mercadorias no Brasil. Muito tem se falado na Petrobras e na dependência da economia em relação às rodovias.

Mas há algo essencial que não tem aparecido nas discussões: como a regulação do trabalho no transporte rodoviário de cargas é uma raiz da crise.

O modo como muitas empresas organizam os motoristas é bom para os seus negócios por muitas razões, dentre eles, a tendência a externalizar os conflitos distributivos das relações de trabalho.

Ao invés de contratar trabalhadores como empregados formais, empresas que distribuem suas mercadorias ou aquelas especializadas em transporte de carga contratam centenas de milhares de motoristas como se fossem autônomos.

Essa estratégia não é exclusividade do setor, nem se restringe ao Brasil. Pelo contrário, tem se expandido em várias atividades ao redor do mundo. No nosso país, com a crise do emprego nos últimos anos, essa forma de contratação tem crescido muito.

O verdadeiro trabalhador autônomo é aquele que presta serviços para diferentes clientes, sem depender, nem estar subordinado, a nenhum deles.

Autônomo só no nome

Por exemplo, motorista autônomo é aquele para o qual você liga uma vez para fazer o carreto de sua geladeira. Existem muitos com esse perfil, mas eles não são a maioria, nem os protagonistas do transporte de cargas no Brasil. Quem dirige o jogo são empresas, sejam donas das cargas ou firmas especializadas no próprio transporte. Elas contratam e gerem centenas de milhares de motoristas, uma parte admitida como empregado, enquanto outra fatia, provavelmente a maior, é contratada como se não fosse assalariada, a despeito da sua subordinação às empresas.

No início de 2017, de acordo com a Confederação Nacional dos Transportes (CNT), estavam inscritos 1.664 milhões de veículos para transporte de cargas, sendo 1.088 milhões de propriedade de empresas e 553 mil vinculados a motoristas classificados como autônomos. Enquanto isso, segundo a Relação Anual de Informações Sociais (RAIS), as empresas de transporte de carga mantinham não mais do que 868 mil trabalhadores como empregados formais, aí incluídos não apenas motoristas, mas todas as demais funções.

As nomenclaturas podem confundir (Transportador Autônomo de Carga (TAC)-Eventual/(TAC)-Agregado, Empresa de Transporte Rodoviário de Cargas – ETC), mas a contratação dos motoristas tem a mesma lógica: é uma estratégia de gestão do trabalho.

É comum motoristas supostamente autônomos (muitas vezes contratados como pessoas jurídicas) trabalharem sempre para a mesma empresa e com exclusividade, em horário e com preços de frete unilateralmente impostos pela contratante. O pagamento desses motoristas depende exclusivamente do número de fretes realizados, e seu trabalho é meticulosamente monitorado por satélite/GPS. As empresas também dirigem as atividades impondo prazos exíguos e multas para atrasos. Em suma, há uma série de evidências da completa falta de autonomia desses "autônomos".

Foto: Felipe Rau/Estadão

Empregados disfarçados

É possível ter uma ideia da dimensão da gestão do trabalho via contratação de motoristas sem formalização do vínculo de emprego por meio de dados das fiscalizações do Ministério do Trabalho. Para ilustrar: em 2012, auditorias em apenas nove empresas de transporte de carga identificaram que 92.654 motoristas trabalharam como empregados sem carteira assinada, sendo irregularmente contratados como "autônomos" pessoas físicas ou vinculados a 20.458 pessoas jurídicas terceirizadas.

Ao contratar motoristas sem admitir sua condição de empregadoras, as empresas não cumprem nenhum direito trabalhista. Assim, tornam a vida desses trabalhadores completamente inseguras, sem sequer uma renda mínima. O frete, que, de fato, constitui o salário desses trabalhadores, costuma não obedecer qualquer parâmetro mínimo. Também não há descanso remunerado, férias etc. O motorista se sente completamente dependente da execução de cada serviço, e por isso tende a trabalhar mais e descansar menos.

Apenas nas fiscalizações citadas foram identificadas 472.606 jornadas de trabalho superiores a dez horas por dia. Segundo o órgão, a maioria dos acidentes envolvendo caminhões está relacionado ao cansaço por jornadas excessivas. Não parece ser coincidência que, em pesquisa da própria CNT, de 2016, só 23,3% dos motoristas entrevistados ditos autônomos afirmaram estar satisfeitos e cumprindo as normas de descanso e 65% disseram não cumprir a lei, enquanto entre os motoristas empregados, 67% estavam satisfeitos e 51,7% afirmaram cumprir os descansos previstos na lei.

A questão, do ponto de vista da gestão do trabalho, é que o trabalhador contratado como autônomo tende a ser ainda mais subordinado à empresa, pois sua relação é completamente precária e cada frete pode ser o último.

Baixa renda, risco total

Mas não para por aí. À negação dos direitos trabalhistas se soma a transferência dos custos dos insumos (combustível, pneus, manutenção etc.) aos trabalhadores ditos autônomos. Desse modo, além de não ter renda certa, os motoristas têm que cobrir os custos inerentes à atividade, radicalizando sua insegurança. As empresas gastam menos, correm menos risco e têm um trabalhador ainda mais dócil laborando em seu benefício.

Não bastasse, ao transferir para o trabalhador o risco do negócio, incluindo os custos dos insumos, as empresas têm conseguido desviar da relação de trabalho o foco da disputa distributiva.

Aceitando a condição de "autônomo" imposta pelas empresas, o motorista tem visto nos preços dos insumos uma fonte de determinação dos seus ganhos mais importante do que o preço pago pelos seus serviços.

Foto: Miguel Schincariol/AFP

Segundo a supracitada pesquisa da CNT, 56,4% dos motoristas enquadrados como autônomos considerava o custo do combustível o principal problema do seu trabalho, e apenas 1% apontava o valor do frete como a reivindicação mais importante para a categoria.

Pensemos o seguinte: por que a mobilização para reduzir o preço do diesel não atinge os motoristas de ônibus? A resposta é simples: Porque as empresas de ônibus (ainda) não negam a condição de assalariamento dos seus trabalhadores e, consequentemente, o aumento do preço é um problema fundamentalmente das empresas. Quão improvável é ver trabalhadores de siderúrgicas e montadoras de carros lutando pela redução do preço do carvão e dos pneus, ao invés de pleitear melhores salários?

Estamos tratando da atividade em que mais morrem empregados no Brasil todos os anos, segundo as fontes oficiais – mais de 10% dos mortos no conjunto do mercado de trabalho formal. A subnotificação dos infortúnios pode chegar a 90% entre todos os acidentes no Brasil, mas é provavelmente pior no setor de cargas, dado o desproporcional contingente de motoristas não admitidos como empregados formais.

Reforma Trabalhista piora o quadro

O Estado tem contribuído para legitimar esse cenário. A regulação dos TAC, ETC, entre outros, tende a legitimar e recrudescer essa estratégia de contratação pelas empresas, ainda mais estimulada com a recente Reforma Trabalhista. No judiciário, a disputa sobre os limites ao uso de motoristas de carga como assalariados disfarçados está suspensa desde o final de 2017, por conta de uma liminar do Supremo Tribunal Federal concedida por Luís Roberto Barroso.

Enquanto isso, a maioria dos motoristas parece mesmo assumir a retórica empresarial de que são autônomos, de modo que sofrem, morrem, mas não demandam serem menos explorados por seus empregadores. Por ser no custo do insumo a disputa que estamos assistindo, os empresários se aproveitam para apoiar (ou mesmo promover) as paralisações.

Em suma, trabalhadores são precarizados e geridos pelas empresas de tal modo que não se mobilizam nem são capazes de enfrentar quem fundamentalmente impõe seus baixos rendimentos, grande instabilidade e péssimas condições de trabalho.

(*) Vitor Araújo Filgueiras é professor de Economia da Universidade Federal da Bahia (UFBA) e foi auditor fiscal do trabalho entre 2007 e 2017. José Dari Krein é professor do Instituto de Economia da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp)

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.