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Leonardo Sakamoto

Como torturar dados sobre homicídios para limpar a barra do racismo

Leonardo Sakamoto

06/06/2018 16h18

Mortos em chacina em Belém em 2017. Foto: Marcelo Lélis/Diário do Pará

Foi bizarra a reação de determinados homens e mulheres brancos nas redes sociais, clamando para si o lugar de principal vítima da violência brasileira, indignados com as matérias que mostraram dados apontando que esse triste papel cabe a jovens negros e negras. Bradavam que divulgar que homicídios acometem, na média nacional, 2,5 vezes mais negros (que incluem pretos e pardos, segundo o IBGE) do que não-negros era praticar "racismo reverso".

Até nisso uma parte tacanha do país quer os holofotes voltados para si. Pois ao apontar essas estatísticas, pesquisadores e jornalistas mostram que o poder público, que não consegue garantir segurança à população, falha ainda mais com uma parcela vulnerável. E isso não pode ser ignorado.

O Atlas da Violência 2018, divulgado nesta terça (5), mostrou que, em dez anos, os homicídios de não-negros caíram 6,8% e os de negros aumentaram 23,1%. E que, em 2016 (ano com mais de 62,5 mil homicídios), a taxa de homicídios da população negra foi de 40,2 mortes por 100 mil habitantes, enquanto que a da não-negra foi de 16/100 mil. O estudo foi organizado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) em parceria com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública com dados do Ministério da Saúde.

Há os extremos, Alagoas contou com taxa de 69,7/100 mil de homicídios de negros e 4,1/100 mil para homicídios de não-negros. No Paraná a taxa foi maior para brancos (30,6) do que para negros (19).

Considerando que a violência cresceu em estados com maior presença de negros, alguém poderia dizer que tudo isso apenas acompanha a proporção desse grupo junto à população. Contudo, o Atlas da Violência aponta que 71,5% dos assassinados foram negros em um país em que 54,9% da população era negra, novamente segundo o IBGE. Essa diferença não é aleatória.

Por que estados com maioria negra tem altas taxas de homicídio? Apenas pessoas com alguma sociopatia grave acham que a razão é que negros são mais violentos que brancos. A resposta é estrutural e não pontual.

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Nas periferias de grandes cidades, como o Rio de Janeiro, as batalhas do tráfico sempre aconteceram longe dos olhos da classe alta, uma vez que a imensa maioria dos corpos contabilizados é de jovens negros e pobres, que se matam na conquista de territórios para venda de drogas, pelas leis do tráfico e pelas mãos da polícia e das milícias. Os mais ricos sentem a violência, mas o que chega neles não é nem de perto o que os mais pobres são obrigados a viver no dia a dia.

Considerando que moradores, traficantes e policiais são de uma mesma origem social e, muitas vezes, da mesma cor de pele, isso acaba sendo tratado como uma "batalha interna" por parte da população, da mídia, do poder público. E saber que, não raro quem morre e quem mata tem a mesma cor de pele, basta para que parte da sociedade afirme que isso não é consequência de racismo. Afinal para esse pessoal, são "negros matando negros". Ou como circulou nas redes sociais "deixem que se matem".

Provavelmente quem pensa dessa forma deve achar que também não havia racismo na escravidão porque o feitor que chicoteava e o capitão do mato que caçava quem fugia do cárcere eram da mesma cor de pele que eles. Devem, portanto, considerar que aquele esquema colonial e imperial muito bem engendrado, com fazendeiros, governantes locais, comerciantes internacionais, manufaturas de outros países, reis e rainhas não eram responsáveis pela exploração da dignidade humana e pelas mortes decorrentes. O culpado era apenas o feitor.

Hoje, essas pessoas olham apenas para quem puxa o gatilho e não para quem levou a arma até as mãos dos executores. Ou para quem montou e mantém um sistema repressivo e genocida funcionando. Ou ainda para quem não prioriza a educação, a saúde, o emprego, a cultura, o lazer, a moradia, o transporte dos mais jovens. Ou para quem ignora os direitos de comunidades qulombolas e de sem-terra, passando fogo. Ou para uma sociedade que nunca foi capaz de inserir, com igualdade de condições, os trabalhadores libertos e seus descendentes, mantendo-os mais vulneráveis. E se beneficia política e economicamente com tudo isso. Se olhasse perceberia que a maioria dos que controlam o circo não é negra. Somos nós, não-negros.

A questão não é apenas de desigualdade racial. A falta de atenção do poder público com essa diferença de mortes é racismo estrutural. E deveria ser tratado como tal.

O Brasil é violento contra brancos, negros, indígenas, entre outros grupos. E mais ainda com os pobres entre eles. Há questões, contudo, que não dizem respeito apenas à renda, mas a problemas historicamente arraigados e não resolvidos.

Jogar isso para baixo do tapete não fará o problema subir, apenas torna mais ridículo o discurso que tenta justifica-lo. Pois o problema é maior que o tapete.

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.