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Leonardo Sakamoto

Fraude na Mega-Sena: Do déficit em matemática, surge a teoria conspiratória

Leonardo Sakamoto

25/06/2018 20h31

Para ilustrar muito dinheiro, nada mais pitoresco que os 51 milhões de Geddel Vieira Lima em um apartamento em Salvador

50 – 51 – 56 – 57 – 58 – 59. Confesso que foi delicioso ler nas redes sociais as teorias da conspiração que enxergaram na sequência dos números sorteados na Mega-Sena, do último sábado (23), uma irrefutável prova de fraude. Houve aquelas que apelaram para os Illuminati e a Maçonaria. Outras disseram que a culpa era do PT e do PSDB.

Claro que essas postagens são um belo indício do tamanho da deficiência em nossa formação para a matemática. A chance de aparecer esse conjunto de números é a mesma que a de qualquer outro. O estranhamento é mais estético – dada a quantidade de "cincos" juntos – e não estatística. Todas as apostas com seis números têm a mesma chance de 1 para 50.063.860 de acerto. Portanto é bem mais fácil aquele meteoro redentor acertar sua cabeça do que você ganhar na loteria.

Diante da falta de entendimento sobre como funciona a estatística, muitos buscam preencher o que consideram inexplicável com fatos conhecidos para que o mundo faça sentido. Ou seja, como não entendem como opera a estatística e os cálculos de probabilidades, resultados assim só podem ser de manipulação de um governo corrupto. Para efeito de comparação, muitos de comunidades isoladas que não sabem o que é um eclipse ficam felizes quando a lua vomita o Sol de volta.

Se há um exército que retuíta, compartilha e dá like sem checar a informação, é claro que também existe uma miríade que preenche o vácuo de informações fragmentadas com suas fantasias para dar sentido à sua existência.

Não que conspirações não existam, porque existem. Mas são importantes demais para que o impacto de sua descoberta seja enfraquecido pela sua banalização no cotidiano sem graça. Por outro lado, quando a gente questiona afirmações categóricas de conspiração, temos que ouvir que somos inocentes ou vendidos ao sistema e que, graças à internet, a verdade que queremos encobrir não ficará mais escondida.

Uma mentira repetidas vezes para os outros vira verdade e, para si mesmo, torna-se religião. Se o texto conspiratório é bem amarrado, usando elementos simbólicos comuns ao universo do destinatário, que ele consegue consumir facilmente, e que faz algum sentido, por que não acreditar? Ainda mais porque demonstrar que o número é possível leva tempo e boa vontade do outro lado, commodities que estão cada vez mais difíceis de juntar.

Por outro lado, o mundo sem teorias da conspiração seria menos divertido e romântico. E teríamos que assumir muitas de nossas ignorâncias e responsabilidades sem jogar a culpa no desconhecido, no oculto, no sobrenatural, no estrangeiro. Não sou eu que não sei matemática, é o mundo que opera de forma sorrateira.

Um estudo conduzido pelo Instituto Paulo Montenegro e pela ONG Ação Educativa mostrou que uma fatia de apenas 8% dos brasileiros em idade de trabalhar é considerada plenamente capaz de entender e se expressar por meio de números e letras.

Segundo a pesquisa, esse indivíduo é capaz de compreender e elaborar textos de diferentes tipos, como mensagem (um e-mail), descrição (como um verbete da Wikipedia) ou argumentação (como os editoriais de jornal ou artigos de opinião), além de conseguir opinar sobre o posicionamento ou estilo do autor do texto. Também está apto a interpretar tabelas e gráficos como a evolução da taxa de desocupação e compreende, por exemplo, que tendências aponta ou que projeções podem ser feitas a partir desses dados.

Apenas 8%. Impressionante seria se as teorias da conspiração não surgissem, portanto. Neste caso, elas são indicadores de que precisamos avançar – e muito – na qualidade da educação formal.

Piora ainda mais esse quadro o momento de descrença nas instituições. Em especial, a Caixa Econômica Federal, importante instrumento de políticas públicas, que viu milhões serem dela desviados. Graças a operações como a Sepsis e a Cui Bono?, derivadas da Lava Jato, ficamos sabendo como políticos como Geddel Vieira Lima e Eduardo Cunha receberam vantagens ilícitas. As ações não envolveram manipulação de resultados das loterias, mas a instituição acabou com o nome manchado mesmo assim. O que é um prato cheio para mais conspiração.

A graça da humanidade é que, mesmo que a maioria da população soubesse como funciona a estatística, continuaria apostando na loteria. Seja por que acha que Deus existe e, existindo, curte mais suas preces do que a de bilhões de outros mortais, preferindo ignorar o livre-arbítrio para te conceder um prêmio em vez de acabar com a morte de crianças na guerra na Síria. E as pessoas que gostam de perder dinheiro e curtem um autoengano masoquista.

Estou orgulhosamente na última categoria, apesar de ter um pai formado em Matemática. Por coincidência, uma das minhas duas apostas corriqueiras, há anos, é praticamente sequencial. Não na dezena dos 50, infelizmente.

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.