Corte condena Brasil por não punir assassinato de Herzog pela ditadura

Corpo do jornalista Vladimir Herzog pendurado em cela do Exército. Ele foi morto pela ditadura, que tentou forjar um suicídio em 1975
A Corte Interamericana de Direitos Humanos considerou o Estado brasileiro responsável pela falta de investigação e de punição dos responsáveis pela tortura e assassinato do jornalista Vladimir Herzog, de acordo com comunicado divulgado na página da instituição nesta quarta (4).
A Corte Interamericana – órgão jurisdicional da Organização dos Estados Americanos (OEA), responsável por fiscalizar se os países cumprem as obrigações previstas nos tratados continentais nessa área – também culpou o Brasil pela violação do direito dos parentes de Herzog de conhecer a verdade e questionou a aplicação da Lei da Anistia, de 1979, que seria usada para encobrir e proteger os responsáveis pela morte. A Corte lembrou que, por ser crime de lesa humanidade, ele é imprescritível e não passível de anistia.
Leia a íntegra da decisão aqui.
Em 25 de outubro de 1975, ele foi morto nas dependências do Exército após ter se apresentado para prestar um depoimento. A ditadura, contudo, afirmou que ele havia cometido suicídio. A versão, justificada por um laudo médico forjado e uma foto grosseiramente montada (acima), não convenceu. Com isso, o assassinato de Vlado, que trabalhava na TV Cultura, serviu para mostrar à população o destino de quem discordava do regime. E se tornou um marco na luta contra as arbitrariedades do governo militar.
Por diversas vezes, o Estado brasileiro se negou a investigar e a responsabilizar os envolvidos. A Justiça Militar arquivou o caso em 1976. E, sob a democracia, a Justiça impediu o avanço de inquéritos abertos sobre o caso. Justificava-se pela Lei da Anistia.
"É o final de uma longa caminhada. São 43 anos em busca de Justiça", afirmou, ao blog, Ivo Herzog, filho de Vlado e um dos fundadores do Instituto Vladimir Herzog, que atua na área de direitos humanos.
"Pretendo fazer uma entrega simbólica da sentença para a ministra Cármen Lúcia, presidente do STF, para Raquel Dodge, procuradora-geral da República, e para Michel Temer. As famílias das vítimas pagaram um custo muito alto. Quero entregar ao Estado brasileiro e ouvir uma resposta sobre essa entrega", diz.
Diante da falta de vontade do poder público em dar uma solução, o caso foi apresentado à Comissão Interamericana dos Direitos Humanos, em 2009, pelas mãos do Centro pela Justiça e o Direito Internacional (Cejil). Seis anos depois, a Comissão recomendou ao Estado brasileiro que investigasse a detenção, tortura e morte de Herzog a fim de identificar os responsáveis. O Brasil se negou novamente. Daí, em abril de 2016, por conta do descumprimento das recomendações da Comissão, o caso foi levado à Corte Interamericana.
"Herzog foi privado de sua liberdade, interrogado, torturado e finalmente assassinado em um contexto sistemático e generalizado de ataques contra a população civil considerada 'opositora' à ditadura brasileira e, em particular, contra os jornalistas e membros do Partido Comunista Brasileiro", afirma o comunicado da Corte, sediada em São José, capital da Costa Rica.
Lei da Anistia
Em sua sentença, a Corte determinou que os fatos ocorridos contra Herzog devem ser considerados um crime contra a humanidade, conforme definido pelo direito internacional. O tribunal concluiu que o Estado não pode invocar a existência da figura da prescrição da Lei da Anistia ou de qualquer outra disposição semelhante para abrir mão de seu dever de investigar e punir os responsáveis.
Ivo Herzog afirma que a decisão da Corte Interamericana reforça que torturas e assassinatos ocorridos durante a ditadura militar devem ser investigados e seus responsáveis levados à Justiça. Lembra que a ideia de imprescritibilidade de crimes que lesam a humanidade foi construída após a Segunda Guerra Mundial. E que já passou da hora de o Brasil seguir os tratados internacionais com o qual se comprometeu.
No processo perante a Corte, o Brasil reconheceu que a conduta arbitrária do Estado na prisão, tortura e morte de Vladimir Herzog tinha causado dor severa à família, reconhecendo sua responsabilidade pela violação da Convenção Americana de Direitos Humanos.
A decisão da Corte Interamericana é considerada relevante por reforçar ao Estado brasileiro que crimes contra a humanidade – neste caso, aqueles que envolvem tortura e assassinato de dissidentes políticos sob a responsabilidade de agentes públicos – são imprescritíveis. Ou seja, a Lei da Anistia não pode apagar o que aconteceu.
Mas também é importante para lembrar a população. Pois ainda hoje há quem defenda a declaração forjada do Exército de que ele realmente cometeu suicídio.
"Uma grande parte da população desconhece os fatos. A Lei da Anistia é uma tentativa de manter o silêncio de maneira eterna. Dessa forma, as pessoas ficam desejando a volta de uma coisa que não sabem o que era", afirma Ivo Herzog.
"Parte da população não sabe o que é ter medo de uma campainha tocar em sua casa. Ou de participar de uma reunião com 30 pessoas e ser tratado como 'subversivo'. Se o Brasil tiver soberania e maturidade de seguir essa sentença, teremos uma possibilidade única de contar nossa história e tirar essa mordaça. O maior ato de não-soberania é ter que descobrir a nossa história por arquivos de outro país. Isso é um absurdo."
Ele se refere a um documento secreto liberado pelo Departamento de Estado norte-americano que mostrou que o general Ernesto Geisel aprovou a manutenção de uma política de execuções sumárias de adversários em 1974. O ditador brasileiro, que governou entre aquele ano e 1979, teria orientado João Baptista Figueiredo – então chefe do Serviço Nacional de Informações e que seria seu sucessor – a seguir com os assassinatos que começaram no governo do general Médici. Ou seja, a autorização das mortes vinha da cúpula do governo.
Quem percebeu a importância do documento, no qual o governo reconhece executar dissidentes, e o postou nas redes sociais, em maio deste ano, foi Matias Spektor, colunista da Folha, e professor de Relações Internacionais da Fundação Getúlio Vargas. O memorando é assinado pelo diretor da CIA na época, William Colby, e relata uma reunião com Geisel. É citada a execução sumária de, pelo menos, 104 pessoas.
Em março de 2013, os familiares de Herzog receberam novo atestado de óbito, trazendo como causa da morte "lesões e maus-tratos sofridos durante o interrogatório nas dependências do segundo Exército DOI-Codi" por determinação da Justiça paulista. No documento anterior, forjado pelo médico da ditadura, aparecia "enforcamento por asfixia mecânica".
Segunda chance para o Brasil
Não é a primeira vez que a Corte Interamericana dos Direitos Humanos afirmou que as disposições da Lei da Anistia brasileira que impedem a investigação e punição de violações contra os direitos humanos são incompatíveis com a Convenção Americana dos Direitos Humanos. Ou seja, essa lei vai contra um documento internacional assinado pelo Brasil e que o país deve respeitar por que tem força de lei.
Em dezembro de 2010, a Corte concluiu que o Estado é responsável pelo desaparecimento de 62 pessoas entre os anos de 1972 e 1974, durante a Guerrilha do Araguaia. Mais especificamente, responsável pela violação do direito à integridade pessoal de familiares das vítimas, em razão do sofrimento pela falta de investigações efetivas para o esclarecimento dos fatos e pela violação do direito de acesso à informação, estabelecido no artigo 13 da Convenção Americana, pela negativa de dar acesso aos arquivos em poder do Estado com informação sobre esses fatos. Por isso, o Brasil deve investigar e punir as mortes por meio da Justiça. Para ver a decisão, clique aqui.
Contudo, o Supremo Tribunal Federal, que havia decidido pela validade da Lei da Anistia, não reconheceu a decisão da Corte Interamericana. Na época, o presidente da corte, ministro Cezar Peluso, afirmou que a decisão "não revoga, não anula, não caça a decisão do Supremo". A lei segue valendo no país.
A Corte não tem poder para forçar o Estado brasileiro, mas outros países podem pressionar tendo a decisão como base. E há uma nova chance para o STF rever a posição, estimulado pelo caso Herzog. "Vamos agora entender se somos mesmo uma nação ou apenas um bando de gente", conclui Ivo.
Cronologia da Impunidade
24 de outubro de 1975
Vladimir Herzog é citado a comparecer ao DOI-CODI em São Paulo para ser interrogado sobre seus vínculos com o Partido Comunista Brasileiro (PCB).
25 de outubro de 1975
Após se apresentar ao DOI-CODI, Herzog é detido sem ordem judicial. Membros do exército o torturam e matam, porém, a versão oficial do exército diz que a causa da morte foi suicídio.
31 de outubro de 1975
Devido à pressão do público no Brasil, o Comando do Segundo Exército emite ordens para que sejam determinadas as circunstancias do suicídio de Vladimir Herzog. No dia seguinte, é aberto um inquérito policial militar.
8 de março de 1976
O sistema de Justiça Militar arquiva a investigação da morte de Herzog, declarando que nenhum delito havia ocorrido por parte do DOI-CODI. A investigação é arquivada apesar do fato de que o médico que supostamente havia realizado a autópsia de Herzog testemunhou nunca ter visto o corpo do jornalista.
19 de abril de 1976
Clarice Herzog, esposa de Herzog, e seus dois filhos apresentam uma Ação Declaratória perante a Justiça Federal de São Paulo, requerendo que a corte declare a responsabilidade do Estado brasileiro pela prisão arbitrária, tortura e morte de Herzog. A família de Herzog declara que o Estado havia sido responsável pela segurança física do jornalista por sua presença no DOI-CODI e que a versão oficial de sua morte foi falsa na descrição dos eventos que haviam ocorrido no dia da morte de Herzog.
2 de julho de 1976
O Estado apresenta sua defesa às alegações e pede que a ação declaratória seja inadmitida.
27 de outubro de 1978
O juiz federal emite sentença sobre o caso Herzog declarando que o jornalista foi detido e morto devido a graves torturas.
28 de agosto de 1979
A Lei No. 6.683, conhecida como Lei da Anistia, é aprovada, outorgando anistia aos crimes políticos e aos crimes com eles conexos, praticados entre 2 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979. A interpretação que se consolidou nacionalmente foi de que os crimes praticados por agentes do Estado do regime seriam conexos aos crimes políticos e portanto amparados pela Lei da Anistia.
27 de abril de 1992
Diante de novas informações publicadas na revista "Isto é, Senhor", o Ministério Público do Estado de São Paulo requisita a abertura de inquérito policial para apurar as circunstâncias do homicídio de Herzog.
13 de outubro de 1994
O Tribunal de Justiça de São Paulo determina o trancamento do inquérito policial, por considerar que os crimes descritos teriam sido objeto de anistia.
5 de março de 2008
Com base em fatos novos, procuradores do Ministério Público Federal encaminharam uma representação à divisão criminal da Procuradoria da República, para que fosse instaurada uma persecução penal em face dos responsáveis pelo crime de homicídio e tortura contra Vladimir Herzog.
19 de novembro de 2008
O representante do Ministério Público Federal com prerrogativa criminal proferiu seu parecer pelo arquivamento da investigação, argumentando que o trancamento do inquérito policial anterior havia feito coisa julgada material, e não poderia ser novamente processado.
9 de janeiro de 2009
O pedido de arquivamento é acolhido pela Juíza Federal competente, que defende ainda que os crimes praticados pelos agentes da ditadura militar estariam prescritos.
10 de julho de 2009
A Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) recebe do CEJIL a petição sobre o caso Vladimir Herzog.
28 de outubro de 2015
A CIDH publica seu Relatório de Mérito nº 71/2015 sobre o caso, no qual conclui que o Estado brasileiro é responsável pelas violações aos direitos à vida, à liberdade e à integridade pessoal de Herzog, e também pela privação de seus direitos à liberdade de expressão e de associação por razões políticas. A Comissão recomenda ao Estado brasileiro que investigue a detenção, tortura e morte de Herzog para identificar os responsáveis.
22 de abril de 2016
A CIDH apresenta o caso à Corte Interamericana de Direitos Humanos, devido ao descumprimento do Estado das recomendações feitas pela Comissão.
16 de agosto de 2016
É submetido à Corte Interamericana o Escrito de Petições, Argumentos e Provas dos representantes da vítima e seus familiares.
14 de novembro de 2016
O Estado brasileiro apresenta sua Contestação.
24 de maio de 2017
Realização da Audiência Pública na sede da Corte Interamericana em San José, Costa Rica, com a presença dos representantes da vítima, e do Estado, contando com o depoimento de familiares e peritos.
(Fonte da cronologia: Instituto Vladimir Herzog)
Post atualizado, às 18h40 do dia 04/07/2018, para inclusão de informações.
ID: {{comments.info.id}}
URL: {{comments.info.url}}
Ocorreu um erro ao carregar os comentários.
Por favor, tente novamente mais tarde.
{{comments.total}} Comentário
{{comments.total}} Comentários
Seja o primeiro a comentar
Essa discussão está encerrada
Não é possivel enviar novos comentários.
Essa área é exclusiva para você, assinante, ler e comentar.
Só assinantes do UOL podem comentar
Ainda não é assinante? Assine já.
Se você já é assinante do UOL, faça seu login.
O autor da mensagem, e não o UOL, é o responsável pelo comentário. Reserve um tempo para ler as Regras de Uso para comentários.