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Leonardo Sakamoto

PGR defende "lista suja" da escravidão contra ação de construtoras no STF

Leonardo Sakamoto

04/07/2018 14h43

Vítimas do trabalho escravo são resgatados no Pará. Foto: Leonardo Sakamoto

A procuradora-geral da República, Raquel Dodge, defendeu a manutenção e divulgação do cadastro de empregadores flagrados com mão de obra análoga à de escravo – conhecido como "lista suja" – em parecer enviado, nesta terça (3), ao Supremo Tribunal Federal. Para ela, a relação é um importante instrumento de "transparência" e de "acesso à informação" sobre ações governamentais – no caso, as ação de libertações de trabalhadores. A manifestação é contrária ao pedido da Associação Brasileira das Incorporadoras Imobiliárias (Abrainc), que propôs a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 509, defendendo que o cadastro é inconstitucional.

A Abrainc reúne 33 empresas do setor e seu conselho conta com representantes da MRV Engenharia, Cyrela Brazil Realty, Cury Construtora, Tenda, Tegra e Eztec.

Apresentada em janeiro, a ação pediu que o Supremo Tribunal Federal declare inconstitucional a portaria que prevê a "lista suja" do trabalho escravo, considerada pela associação um instrumento de punição precoce e ilegal de empresas autuadas por órgãos federais. O relator da ação, ministro Marco Aurélio Mello, negou a liminar pedida pela Abrainc e deve levar o caso ao plenário – sem data ainda definida.

A "lista suja" existe desde 2003 e, por regra, é atualizada a cada seis meses pelo Ministério do Trabalho. Prevista em portaria conjunta dos Ministérios do Trabalho e dos Direitos Humanos, ela inclui nomes após o exercício do direito de defesa administrativa em primeira e segunda instâncias. O empregadores, pessoas físicas e jurídicas, permanecem listados, a princípio, por dois anos. Eles podem optar, contudo, por firmar um acordo com o governo e serem suspensos da relação. Para tanto, precisam se comprometer a cumprir uma série de exigências trabalhistas e sociais.

Apesar da portaria que prevê a lista não obrigar a um bloqueio comercial ou financeiro, ela tem sido usada por empresas brasileiras e estrangeiras para seu gerenciamento de risco. O que tornou o instrumento um exemplo global no combate ao trabalho escravo, reconhecido pelas Nações Unidas.

"A Portaria Interministerial 4/2016 nada mais é do que instrumento administrativo concebido para dar concretude aos princípios constitucionais da publicidade, da transparência da ação governamental e do acesso à informação", afirma Raquel Dodge no parecer, citando os artigos da Constituição Federal que protegem a divulgação do cadastro.

"Por meio dela, diante da gravidade das práticas que reduzem trabalhadores a condições análogas à de escravo, os Ministros de Estado competentes deliberaram consolidar ações estatais e divulgá-las para conhecimento público, dado o interesse coletivo e geral das informações, como prevê a Carta Magna."

Para a procuradora-geral da República, "a publicidade dos atos administrativos, ressalvados os casos previstos em lei, é imperativo da ordem constitucional e do Estado Democrático de Direito, e qualquer prejuízo porventura sofrido por empregadores cadastrados nos moldes da Portaria Interministerial 4/2016 [que organiza a lista] – que não prevê nenhuma sanção – decorre puramente da reprovabilidade social da conduta de quem superexplorou e coisificou trabalhadores, negando-lhes dignidade".

Em outras palavras, a "lista suja" não prevê punição por parte do poder público. Se ela ocorre, é porque empresas, bancos e a sociedade rejeitam quem se utilizou de trabalho escravo.

A mesma associação já tinha conseguido suspender a "lista suja" em dezembro de 2014, em meio ao plantão do recesso de final de ano de 2014, por decisão do então presidente, Ricardo Lewandowski. A suspensão foi derrubada em maio de 2016 pela ministra Cármen Lúcia após o Ministério do Trabalho publicar novas regras de entrada e saída do cadastro, atendendo a demandas do setor empresarial.

Porém, o governo Michel Temer manteve a publicação da relação congelada até que perdeu uma batalha judicial para o Ministério Público do Trabalho. Com isso, a "lista suja" voltou a ser divulgada apenas em março de 2017.

Sete meses depois, em outubro, o Ministério do Trabalho publicou uma polêmica portaria que fornecia novas regras para fiscalização de condições análogas às de escravo, o que alterava a aplicação do conceito desse crime (previsto no artigo 149 do Código Penal) e dificultava o resgate de pessoas. A mesma portaria (1129/2017) também reduzia a transparência da "lista suja", tornando sua atualização dependente de uma decisão política do ministro e não mais da área técnica da fiscalização. Além de condicionar a validação da operação de fiscalização à presença de forças policiais, o que não é necessário hoje.

A tentativa de dificultar a libertação de trabalhadores foi vista como moeda de troca entre o governo federal e a bancada ruralista para barrar a denúncia por organização criminosa e obstrução de Justiça contra Michel Temer na Câmara dos Deputados. Segundo fontes no Ministério do Planejamento, o texto da polêmica portaria atendeu não apenas aos ruralistas, mas a demandas contra a "lista suja" de incorporadoras imobiliárias.

Em resposta a uma Ação Direta de Inconstitucionalidade movida pelo partido Rede, a ministra Rosa Weber concedeu uma liminar suspendendo os efeitos da portaria ainda em outubro. E, em um de seus últimos atos como ministro do Trabalho, Ronaldo Nogueira editou uma nova portaria que trata sobre o conceito de trabalho em condições análogas à de escravo e da "lista suja". A portaria 1293/2017, de dezembro, substituiu a anterior, voltando atrás nas mudanças.

A PGR também apresentou ao Supremo parecer favorável à Ação Direta de Inconstitucionalidade movida pela Rede contra a portaria 1129/2017. Defende que a edição da portaria 1293/2017 revogou a anterior – que, segundo a instituição, ofende a dignidade humana.

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.