Mortes no Frio: Toleramos vidas pobres, desde que não façam barulho ao sair
Tendo em vista as baixas temperaturas ostentadas pelos termômetros em boa parte do país, é bem provável que alguém amanheça sem vida, nas ruas de alguma cidade, nesta quarta.
A hipotermia terá sido mera consequência uma vez que não se morre de frio, mas de falta de políticas públicas ou de especulação imobiliária.
Quem tenta mudar esse cenário acaba também ameaçado de morte, como vem ocorrendo com o padre Júlio Lancelotti, da Pastoral do Povo de Rua.
Da mesma forma, não se morre por "desastres naturais", como as chuvas ou as secas que castigam outras partes do país. Às mortes por falta ou excesso de água deveríamos dar o nome de "desastres políticos e administrativos" – pois já há tecnologia e protocolos para prever, reduzir e evitar o sofrimento.
Mas por irresponsabilidade e incompetência de gestores, pessoas são levadas pela correnteza, soterradas em deslizamentos ou desnutridas pela seca.
Enquanto você lê este texto, trabalhadores escravizados passam frio costurando em oficinas de costura em São Paulo. E outros trabalhadores escravizados respiram fumaça em grandes áreas de desmatamento na Amazônia.
Isso também poderia ser evitado uma vez que contávamos com uma boa política pública nesse sentido, criada pelo governo do PSDB e transformada em referência internacional pelo governo do PT, para desespero de quem ama a ultrapolarização.
A prioridade em libertar pessoas, infelizmente, deixou de existir quando o governo federal tentou dificultar essas operações no ano passado. Vale acompanhar o que o novo ministro do Trabalho fará a respeito: resgatar a política ou atender às exigências de empresas que perdem dinheiro com o combate a esse crime.
Brasileiros, bolivianos, chineses, venezuelanos, haitianos que não existem no país em que roupa e carne vem da geração espontânea.
Faz um ano que um homem morreu na esquina da rua Teodoro Sampaio com a avenida Doutor Arnaldo, na capital paulista, após uma noite, uma madrugada e uma manhã muito frias.
Durante horas, seu corpo ficou ali parado, imóvel, enquanto todos passavam por ele, carregando suas vidas.
Ironicamente, aquele pacote de gente – que se foi sem apresentar sinais de violência além da violência inerente àquela situação – estava entre as faculdades de Medicina e de Saúde Pública da Universidade de São Paulo. E a alguns metros do Hospital das Clínicas, mas também do Instituto Médico Legal e do Cemitério do Araçá.
Por aqui, a vida persiste, vencendo o descaso.
Mas isso não significa que ela seja forte o bastante para se fazer notar.
A verdade é que até somos tolerantes com vidas que acreditamos não valerem nada. Contanto que elas não atrapalhem esteticamente a realidade. E não façam barulho ao sair.
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