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Leonardo Sakamoto

Bolsonaro defende os assassinos dos 19 executados em Eldorado dos Carajás

Leonardo Sakamoto

14/07/2018 12h19

Corpos dos sem-terra mortos no massacre de Eldorado dos Carajás em uma sala do Instituto Médico Legal de Marabá em abril de 1996. Foto: Jorge Araújo/ Folhapress

O deputado federal e pré-candidato à Presidência da República, Jair Bolsonaro, defendeu os policiais que participaram do Massacre de Eldorado dos Carajás no exato local dos 19 assassinatos nesta sexta (13). "Quem tinha que estar preso era o pessoal do MST, gente canalha e vagabunda. Os policiais reagiram para não morrer", disse Bolsonaro no registro do repórter Leonencio Nossa, do jornal O Estado de S.Paulo.

O Brasil desmemoriado talvez não se lembre do que foi o massacre, o horror sentido país afora e a vergonha internacional que isso nos causou. Para quem se lembra, a imagem de um político atacando os sem-terra mortos em seu memorial como parte de uma estratégia de campanha para ganhar espaço na mídia, buscar votos de certos fazendeiros e policiais e receber chuvas de likes de gente desinformada soa como ignomínia. Visitei o memorial pelos mortos diversas vezes. Deveria ser um local de reflexão sobre nossa ignorância, não um espaço para que ela aflorasse.

Dito isso, não vale perder tempo criticando marketing eleitoral de mau gosto. Mas sim explicar o que foi Eldorado dos Carajás e suas consequências à população para a qual Eldorado dos Carajás não significa nada. Pois a certeza da impunidade deixada pelo massacre segue produzindo filhos em toda a Amazônia. Por exemplo, em maio do ano passado, não muito longe dali, dez trabalhadores rurais sem-terra foram executados pela polícia no que ficou conhecido como o Massacre de Pau d'Arco.

O que foi o massacre?
O Massacre de Eldorado dos Carajás foi o palco da execução de 19 sem-terra e deixou mais de 60 feridos em uma ação violenta da Polícia Militar para desbloquear a rodovia PA-150, no Sudeste do Pará, no dia 17 de abril de 1996. Um mês antes, a fazenda Macaxeira, em Curionópolis (PA), havia sido ocupada por mais de 1,2 mil famílias sem-terra. No mês seguinte, um grupo com mais de mil pessoas ligadas ao Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) começa uma marcha para Belém a fim de pedir a desapropriação da área e sua destinação à reforma agrária, obstruindo a rodovia. Duas pessoas foram condenadas por reprimir com morte a manifestação: o coronel Mario Colares Pantoja (a 228 anos) e o major José Maria Pereira Oliveira (a 154 anos), que estavam à frente dos policiais.

O massacre se fez apenas com duas pessoas? 
Os responsáveis políticos na época, o então governador Almir Gabriel (que ordenou a desobstrução da rodovia) e o secretário de Segurança Pública, Paulo Câmara (que autorizou o uso da força policial), nunca foram processados. Outros 142 policiais militares que participaram da matança foram absolvidos. Isso sem contar que as denúncias de fazendeiros locais que teriam dado apoio para a ação policial ficaram por isso mesmo.

O corpo da missionária norte-americana Dorothy Stang, na estrada de terra em que foi morta. Foto: O Estado do Tapajós/Agência Estado

O massacre foi algo novo no Pará?
Se fossemos contar todos os casos anteriores de sindicalistas, trabalhadores rurais, camponeses, indígenas cujos carrascos nunca foram punidos no Pará, teríamos o maior post de todos os tempos. Por exemplo, na década de 80 e 90, os fazendeiros resolveram acabar com o Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Rio Maria, no Sul do Pará, e assassinaram uma série de lideranças. Foram a julgamentos, houve condenações, fuga de pistoleiros, mandantes que viveram em paz até a sua morte natural. A certeza da impunidade pavimenta a tortura e a violência contra trabalhadores e populações tradicionais no Pará. Periodicamente, lideranças sociais são agredidas e mortas na Amazônia. Alguns casos são mais conhecidos e ganham mídia nacional e internacional – como as mortes da irmã Dorothy Stang (em fevereiro de 2005, em Anapu) e das lideranças extrativistas Maria e Zé Cláudio (em maio de 2011, em Nova Ipixuna). Mas a esmagadora maioria passa como anônima e é velada apenas por seus companheiros. Mudanças positivas têm acontecido na Justiça no Pará graças à sociedade civil, à imprensa e a promotores, procuradores e juízes que têm a coragem de fazer o seu trabalho, mesmo com o risco de uma bala atravessar o seu caminho. Mas tudo isso é muito pouco diante do notório fracasso em garantir a dignidade daqueles que lutam com melhores condições de vida até o presente momento.

Um massacre gera filhos?
Muitos. Por exemplo, uma ação conjunta das Polícias Militar e Civil do Pará, em maio do ano passado, levou à morte de nove homens e uma mulher no município de Pau d'Arco. Segundo o governo do Estado, os policiais estariam cumprindo mandados de prisão de acusados de assassinar um segurança de uma fazenda, mas a Comissão Pastoral da Terra afirma que foi uma execução em uma ação de despejo. Os policiais tem sido soltos e presos em uma gangorra judicial desde então. Pau d'Arco tem o mesmo cheiro e gosto que Eldorado dos Carajás. Mas repercutiu bem menos dentro e fora do país. Não por conta dos nove mortos a menos, mas pelo massacre de 1996, que não recebeu devida Justiça, ter aberto uma porteira para outras ocorrências. Como as nove pessoas que foram assassinadas em uma área próxima a um assentamento em Colniza (MT), município que faz divisa com os Estados do Amazonas e Rondônia, em abril de 2017. Dois foram mortos a facadas e sete com tiros de calibre 12 por pessoas encapuzadas, de acordo com sobreviventes. Pegue diferentes matérias sobre os assassinatos no campo. Verá que é só trocar o nome dos mortos, do município (às vezes, nem isso) e onde foi a emboscada para serem a mesma matéria. As mesmas desculpas do governo, os mesmos planos de ação parecidos, as mesmas reclamações da sociedade civil, os mesmos grupos sendo criados para debater e encontrar soluções. Pode-se prender um ou dois. Mas as condições que fizeram Eldorado dos Carajás estão aí produzindo vítimas. De novo. E de novo. E de novo.

Corpos de trabalhadores no Hospital de Redenção, no Pará após a Chacina de Pau D'Arco. Foto: Repórter Brasil

O massacre foi algo isolado?
As mortes no campo são resultado de um modelo de desenvolvimento concentrador e excludente, que fomenta a grilagem de terras e a especulação fundiária. E está pouco se importando com o respeito às leis ambientais, por que acredita que o país tem que crescer rápido, passando por cima do que for. Esse modelo explora mão de obra, chegando a usar trabalho escravo a fim de facilitar a concorrência (desleal) e o dumping social em cadeias produtivas cada vez mais globalizadas (o Pará é o Estado com maior incidência de trabalhado escravo: dos 52.766 libertados, entre 1995 e 2017, 13.211 (25%) estavam lá, a maior parte na pecuária bovina). Tudo com a nossa anuência, uma vez que consumimos os produtos de lá alegres e felizes com nossa ignorância, elogiando algumas marcas e empresas que – ao contrário de nós – não estão imersas em ignorância.

O massacre feito por policiais é apenas culpa do poder público?
A pergunta é: quem comanda o quê? Há uma relação carnal que se estabelece entre o público e o privado na região amazônica. O detentor da terra exerce o poder político, através de influência econômica e da coerção física. É frequente, por exemplo, encontrar policiais que fazem bicos como seguranças de fazendas por conta da baixa remuneração de sua atividade. Em outros casos, as tropas públicas ficam diretamente a serviço de particulares. Sabe qual a chance de trabalhadores rurais que solicitam a destinação de terras griladas para a reforma agrária ou de comunidades tradicionais que exijam a devolução de terras roubadas terem o mesmo sucesso que grandes proprietários que pedirem a desocupação de terras? Anos atrás, grandes proprietários rurais e suas entidades patronais chegaram a demandar intervenção federal no Pará uma vez que o poder público local não estava sendo célere – em sua opinião, claro – para garantir reintegrações de posse de terras (muitas das quais, com sérios indícios de grilagem). Se fossem trabalhadores pedindo isso, o ato seria encarado como um levante e reprimido à bala.

Sem-terra chora a morte do marido durante enterro das vítimas do massacre de Eldorado dos Carajás. Foto: Jorge Araújo/Folhapress

A quem interessa que massacres no campo continuem acontecendo?
Não é de hoje que as regiões de expansão agropecuária e extrativista da Amazônia e do Cerrado vivem uma situação de conflito deflagrado. O Estado brasileiro tem sido incompetente para prevenir e solucionar crimes contra a vida no campo e há uma situação clara de conflito deflagrado. Mortes no campo não são de hoje, mas há muitos produtores rurais e extrativistas gananciosos que estão com sangue nos olhos. Sentem-se fortalecidos por verem no atual governo federal um aliado para suas demandas. Tem sido um bom negócio para ambas as partes: eles garantem a manutenção de Michel Temer (inclusive com a concessão de votos para livrar seu pescoço das denúncias de corrupção passiva, organização criminosa e obstrução de Justiça) e, em troca, ganham perdões bilionários e apoio para sua pauta de retorno ao feudalismo. Querem mudar as regras da demarcação de territórios indígenas, suprimir ainda mais a proteção ambiental, "flexibilizar" as regras para a implantação de grandes empreendimentos, enfraquecer o conceito de trabalho escravo contemporâneo, atenuar a punição para as piores formas de trabalho infantil. E, principalmente, desejam manter sob seu domínio a terra que, muitas vezes, grilaram da coletividade ou roubaram de comunidades tradicionais. Passando bala em quem estiver no meio do caminho, em alguns casos. Qual o município mais violento do Brasil? Rio de Janeiro, com seus 40 mortos por 100 mil habitantes? Não, Altamira, no Pará, com seus 107 mortos por 100 mil habitantes.

Em tempo: Um grupo de homens armados atacou um acampamento com dez famílias de trabalhadores rurais no município de São João do Araguaia, próximo à Marabá, no Estado do Pará, em maio deste ano. Encapuzados, chegaram às margens do rio Araguaia, onde elas estavam acampadas, em duas caminhonetes com pistolas, revólveres e escopetas. De acordo com a Comissão Pastoral da Terra, adultos e até bebês foram vítimas de uma sessão de tortura por quase uma hora. "Os adultos foram espancados a golpes de paus, facões e coronhadas. As marcas ficaram espalhadas pelos corpos dos trabalhadores. Os pistoleiros dispararam suas armas próximo do ouvido de duas crianças gêmeas de três meses de idade para aterrorizar sua mãe. Atiraram em redes com crianças dentro, além de derrubarem e pisotearem crianças no chão. Uma das mães que estava grávida, que também foi pisoteada e teve sangramento", afirma nota da Comissão Pastoral da Terra. No acampamento, havia crianças entre três meses e dez anos de idade.

Malditas crianças, canalhas e vagabundas.

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.