Ao afirmar que STF não deve discutir aborto, religiosos rasgam Constituição
Por Eloísa Machado, especial para o blog*
O Supremo Tribunal Federal deverá analisar se o crime de aborto, previsto em uma legislação de 1940, é compatível ou não com a Constituição Federal de 1988.
Em dois dias de audiência pública convocada pela ministra Rosa Weber, grupos religiosos fundamentalistas, contrários à descriminalização do aborto, usaram o argumento de que o tribunal não deveria ser o espaço a decidir isso.
Ora, em nosso desenho institucional, o Supremo é o órgão guardião da Constituição Federal. Isso significa dizer que grande parte de seu trabalho, como Corte Constitucional que é, consiste em julgar se as leis produzidas pelos legislativos federais, estaduais e municipais estão de acordo, na forma e no conteúdo, com o que diz a Constituição.
Nesse papel, o Supremo também tem analisado se legislações anteriores à Constituição podem sobreviver diante de uma nova ordem jurídica.
Fez isso ao julgar a inadequação da Lei de Imprensa, por exemplo. Naquele julgamento, considerou que o novo regime de liberdade de expressão criado pela Constituição de 1988 não poderia conviver com uma lei autoritária e restritiva do pensamento. Outro exemplo: grupos religiosos fundamentalistas também haviam procurado o Supremo para anular a lei que autorizou pesquisas com células tronco embrionárias aprovada, por unanimidade pelo Congresso Nacional.
Portanto, a palavra e a atitude dos fundamentalistas, além de falaciosas, parecem andar de mãos dadas com o cinismo.
Não há nada de espetacular, ilegal, abusivo (ou mesmo ativista) em um processo constitucional no qual o Supremo analisará a adequação de uma lei à Constituição. Pelo contrário, isso demonstra que as instituições da República ainda funcionam.
Porém, esses grupos religiosos que estão atuando contra a descriminalização do aborto gostariam que o tema ficasse restrito ao Legislativo. Lá eles sabem que as bancadas fundamentalistas, que ostentam membros envolvidos até os tubos em casos de corrupção, impedirão qualquer avanço no direito de mulheres e, de quebra, irão propor projetos cruéis.
Como obrigar uma mulher estuprada a levar a gestação até o final e registrar o nome do estuprador nos documentos de nascimento.
O que esses grupos religiosos querem é o que tem acontecido nos últimos 30 anos: a mulher que passa por um aborto segue criminalizada e o Legislativo bloqueia qualquer debate para adequar a lei de 1940 à Constituição.
O resultado dessa omissão inconstitucional do Legislativo é mensurado em mortes evitáveis de mulheres que não tiveram outra escolha senão o aborto inseguro. De um lado, o Estado, por meio do Legislativo, é omisso. Por outro, é punidor.
Os dados apresentados na audiência pública, que começou na última sexta (3) e continua nesta segunda, foram definitivos: criminalizar o aborto é matar mulheres, ferir seu direito à saúde, incapacitá-las. Contra esses dados, restou a esses grupos religiosos fundamentalistas colocar a ciência em dúvida. Estratégia que, convenhamos, conta com centenas de anos.
Neste ano, em que comemoramos os 30 anos da Constituição Federal de 1988, devemos debater se processar e prender mulheres que interromperem voluntariamente a gestação está ou não de acordo com o direito à dignidade, à igualdade, à liberdade, à autonomia, à privacidade e à cidadania, todos garantidos constitucionalmente a todas as mulheres.
Pois, neste momento, em que a inconstitucionalidade da criminalização do aborto é levada ao Supremo Tribunal Federal, não são apenas as mulheres que abortaram que estão no banco dos réus. É a sociedade brasileira, que não se importa se jovens, negras e pobres, as principais vítimas da falta de atendimento público para o aborto, sigam morrendo todos os dias, por pura hipocrisia. Essa sociedade será julgada pela História.
(*) Eloísa Machado é professora da FGV Direito SP, especialista em direitos humanos e coordenadora do Centro de Pesquisa Supremo em Pauta.
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