Topo

Leonardo Sakamoto

Roupas de refugiados sendo queimadas mostram ao mundo um Brasil sem governo

Leonardo Sakamoto

19/08/2018 10h23

Conflito, em Pacaraima (RR), expulsou refugiados de volta para a Venezuela. Foto: Avener Prado/Folhapress

Parte da responsabilidade pelas turbas enfurecidas de brasileiros que perseguiram refugiados com paus e pedras, derrubaram suas tendas e queimaram seus pertences, neste sábado (18), em Pacaraima (RR), em resposta ao assalto e agressão a um comerciante local, deve entrar na conta de políticos, comunicadores e figuras públicas que vêm elevando o tom contra os venezuelanos que fogem da catástrofe social sob o governo Nicolás Maduro.

O discurso xenófobo acaba por incendiar um ambiente propício ao fogo. Pois outra parte da responsabilidade, a que que esparramou gasolina, deve-se ao poder público devido à sua ação insuficiente – que não têm garantido atendimento emergencial para instalar alojamentos, prover alimentação, ampliar os serviços de saúde e intermediar emprego à altura do desafio.

O acolhimento humanitário de refugiados é previsto em tratados internacionais dos quais o Brasil é signatário. Demandas por ignorar isso enquanto vizinhos, como a Colômbia, recebem um fluxo dez vezes maior, vem do mesmo caldo ignorante que produz pérolas como a sugestão do país deixar a ONU – coisa que nos transformaria em um pária entre as nações.

Ainda mais que a maior parte desses refugiados está apenas de passagem. Dados divulgados pelo governo federal apontam que 69 mil dos 127,8 mil que cruzaram essa fronteira entre 2017 e junho de 2018 já deixaram o país.

O problema não é a fronteira (que o Ministério das Relações Exteriores e o Supremo Tribunal Federal vêm, de forma correta, mantendo aberta apesar da estapafúrdia pressão pelo contrário), mas a falta de planejamento e de execução de políticas por parte do governo federal. E diante disso, mercadores do caos aproveitam-se da situação, seja em Roraima, Brasília, São Paulo, onde for, para jogar a população local contra os que vêm de fora.

O fato de estarmos em período eleitoral, apenas piora o quadro. Há candidatos aos mais diferentes cargos que usam o preconceito ao estrangeiro como plataforma eleitoral.

O surto de violência em Pacaraima começou após um grupo de venezuelanos assaltar e espancar um comerciante, que foi hospitalizado. A solução para o ocorrido – que passaria por prender os envolvidos e levá-los a julgamento, como acontece em milhares de outros casos envolvendo brasileiros que assaltam e ferem brasileiros diariamente no país – acabou sendo um ataque contra os "invasores", após um protesto pacífico descambar para a perseguição aos refugiados. Venezuelanos foram empurrados de volta à fronteira e, segundo relato de Patrícia Campos Mello e Avener Prado, que estão no local pela Folha de S.Paulo, passaram a quebrar carros de brasileiros, em retaliação.

Não se pode culpar uma comunidade pobre pela presença de alguns ladrões da mesma forma que não se pode culpar um bairro rico pela presença de alguns ladrões. Por que, então, centenas de refugiados deveriam ser agredidos pela ação de alguns ladrões? Diante do ressentimento acumulado e da percepção de inação do Estado, a resposta escolhida foi a barbárie.

Ha impactos claros de sobrecarga nos serviços públicos de áreas de entrada, que deveriam ter uma resposta mais rápida do governo federal. A demora para que isso aconteça apenas joga mais combustível.

Mas preocupa a crescente quantidade dos que acreditam que os estrangeiros pobres roubam empregos e pioram a crise influenciados por lideranças e por informações espalhadas pelas redes e aplicativos de mensagens de forma irresponsável. Muitos caem no conto da notícia falsa que diz que o Brasil vai gastar bilhões com Bolsa Família para refugiados, tirando da boca dos nativos, quando a entrada deles é proporcionalmente pequena para causar esse estrago.

Os ataques xenófobos a venezuelanos reportados somam-se à violência contra bolivianos e haitianos nos últimos anos e aos pedidos de devolução de refugiados sírios lidos nas redes sociais. O problema não é com os migrantes ricos e brancos, mas com os refugiados e migrantes pobres. A verdade é que muita gente nas grandes cidades, quando questionada, não sabe de onde vem o incômodo que sente ao constatar centenas de venezuelanos, haitianos ou bolivianos andando nas ruas. Mas se fossem loiros escandinavos ricos pedindo estada, a história seria diferente.

Reportagem publicada, neste domingo (19), no UOL mostra que o Brasil conta com quatro estrangeiros a cada 1000 habitantes – abaixo da média mundial, de 34 e muito aquém da Alemanha (134), dos Estados Unidos (123) e mesmo da Argentina (42). Ao mesmo tempo, se temos 750 mil estrangeiros por aqui, há 3 milhões de brasileiros morando lá fora. Ou seja, temos saldo negativo com o mundo. Ficamos horrorizados com a barbárie cometida contra Jean Charles de Menezes, em 2005, pela polícia de Londres, mas erramos com estrangeiros baseados no preconceito. Diariamente.

Nossos avós eram os forasteiros estrangeiros que sofriam nas mãos dos estabelecidos. Hoje, somos nós os estabelecidos que criticam os forasteiros. Com exceção, é claro, dos indígenas, que sofreram – e ainda sofrem – um processo lento de genocídio, sendo forasteiros em sua própria terra.

Como já disse aqui uma vez e repito: o problema do Brasil não são fronteiras abertas para refugiados venezuelanos, haitianos, sírios. Nosso problema são a elite política e o poder econômico, que continuam mandando no país. Alguns deixam de agir para mitigar o problema. Outros jogam os pobres que aqui já estavam contra os pobres que chegam agora.

Em tempo: enquanto não houver uma articulação regional consistente para construir uma saída dialogada à grave crise na Venezuela, articulação que não passe por devaneios militares, não haverá solução definitiva para a questão dos refugiados.

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.