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Leonardo Sakamoto

Quem não entendeu os protestos acha que fotos das multidões são "falsas"

Leonardo Sakamoto

30/09/2018 11h44

Protesto "Mulheres Unidas contra Bolsonaro", no Largo da Batata (SP). Foto: Nelson Antoine/Folhapress

Um mar de gente esparramou-se pelo Largo da Batata, em São Paulo, e na Cinelândia, no Rio de Janeiro, para participar do protesto "Mulheres Unidas contra Bolsonaro", neste sábado (29). O evento teve escala global – além das dezenas de cidades no Brasil, também foi realizado de Nova York a Melbourne, de Berlim à Cidade do Cabo.

Mas para um grupo de pessoas nas redes sociais tudo foi uma farsa montada pela mídia para encobrir o "fracasso" das mobilizações convocadas pelas mulheres com o objetivo de criar embaraço e inventar mentiras ao seu candidato.

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As milhares de fotos circulando, tiradas por gente de todo o país e de fora? Montagens, usando Photoshop. As imagens captadas por fotógrafos profissionais e publicadas pela imprensa? Trucagens bem remuneradas com dinheiro público. O trânsito desviado pelas prefeituras e o deslocamento de contingentes de policiais para acompanhar os atos? Uma manipulação bem feita para passar a impressão de que o evento foi maior. As imagens que passaram na TV? Vídeos de arquivo da época do impeachment.

Para esse grupo, existe uma ação em curso que envolve o PT, o PSDB, Michel Temer e o MDB, o globalismo liberal, George Soros, o Foro de São Paulo, o Facebook e a "grande mídia esquerdista brasileira" (o Ministério da Saúde adverte: o uso de alucinógeno de forma irresponsável por causar danos ao organismo) para fraudar as urnas eletrônicas e entregar a vitória a Fernando Haddad.

Isso seria mais uma teoria da conspiração do tipo "estão escondendo de nós que a Terra é plana" ou "a Embaixada da Alemanha mente: o nazismo era de esquerda" se não tivesse nascido de declarações do candidato à Presidência da República que está em primeiro lugar nas pesquisas.

Protesto "Mulheres Unidas contra Bolsonaro", Cinelândia (RJ). Foto: Francisco Proner

Os seguidores mais fieis reproduzem essas teses ao ver Jair Bolsonaro afirmar que não reconhecerá um resultado das urnas que não seja sua eleição, que a prova de que ele tem maioria da população é a forma como é tratado nas ruas e que a única maneira do PT ganhar é fraudando. Assumindo isso como verdade, negam qualquer informação que vá de encontro a elas.

Isso é conhecido como viés de confirmação – tendemos a considerar "verdade" tudo aquilo que confirma nossas crenças e "mentira" tudo o que as refuta. Em ambientes ultrapolarizados, como aquele em que estamos agora, isso é exponencialmente radicalizado.

Vendo imagens de manifestações gigantes contra Bolsonaro, algumas pessoas – que acreditam que todo o Brasil apoia o deputado federal – afirmam, em público, que as fotos são mentirosas. Em outras palavras, a realidade só cabe se for para confirmar o que penso, não negar.

Consideremos também que essas pessoas estão imersas em "câmaras de eco", em que ouvem das outras basicamente o que elas mesmo dizem, por conta do algoritmo das redes sociais que seleciona para a sua timeline, pessoas, entidades e conteúdos com os quais você mais interage. Presos numa bolha virtual, acabamos acreditando que o mundo pensa como nós, quando ele é, na verdade, algo mais complicado e plural.

Critiquei, aqui, os que negavam que Jair Bolsonaro havia sofrido um atentado, levando uma facada, no dia 6 de setembro, em Juiz de Fora (MG). O processo de descolamento da realidade é semelhante ao que ocorre agora, no que pese o menor número.

Não importa que entrevistas com médicos tenham afirmado que a faca perfurou o abdômen, atingindo veias e os intestinos delgado e grosso, não importa que tiveram que fazer uma colostomia (quando desvia-se o intestino para fora do corpo, acoplando-se uma bolsa para recolher as fezes, enquanto o corpo se recupera). As pessoas que acreditavam que era um atentado forjado não aceitavam deglutir informações contrárias de fontes checáveis.

Uma mentira repetidas mil vezes para os outros vira verdade e, para si mesmo, torna-se religião. Se a teoria conspiratória é bem amarrada, usando elementos simbólicos comuns ao universo do destinatário (que não entende como funciona pesquisas de opinião e estatística e que não conhece a diversidade de pensamento do país) e se esse destinatário consegue consumi-los facilmente, por que não acreditar?

Por conta disso, temos cultos fundamentalistas que turvam a visão de pessoas que enxergam bem com os dois olhos.

Esse é um dos piores legados que serão deixados por esta eleição, independentemente de quem vença: parte da população não quer mais ouvir, refletir, dialogar sobre a diferença, apenas compartilhar o conteúdo que confirma sua visão de mundo, protegendo-se da "ameaça do diferente" e terceirizando sua autonomia e o protagonismo sobre sua própria vida.

Nunca precisamos tanto da razão e do diálogo. Que venham na forma de pessoas e instituições que construam pontes para unir grupos que, neste momento, não acreditam nos fatos. E que, armados até os dentes com seus preconceitos, vão acabar matando uns aos outros por causa disso.

Em tempo: "Ah, mas circulou uma foto de um outro ato no meio das outras. Provavelmente, sim, uma vez que a internet é incontrolável. Mas isso deslegitima milhares de outras que ganharam destaque pela dimensão dos eventos? Só para quem não quer encarar a realidade.

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.