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Leonardo Sakamoto

"Fraude na urna" cometerá o candidato que não reconhecer a escolha popular

Leonardo Sakamoto

30/09/2018 16h58

Jair Bolsonaro, que tem questionado a lisura das eleições no país. Foto: Adriano Machado/Reuters

Defender que Fernando Haddad representa o mesmo risco à democracia e às instituições que Jair Bolsonaro, em uma falsa equivalência, não é apenas um equívoco, mas um ato irresponsável.

Pois quando Bolsonaro ameaça torturar a democracia se as urnas não o ungirem eleito em outubro, afirmando e reafirmando que não reconhecerá resultado que não seja o de sua própria eleição, deixa – naquele momento – de ser candidato à Presidência e torna-se uma ameaça à República. E como tal, suas declarações devem ser tratadas, sem "mas" ou "por outro lado". Pois elas estão muito além de qualquer insanidade realizada por outras candidaturas.

E olha que elas têm se esforçado.

O PT, de Fernando Haddad, tem seus crimes e pecados e deve continuar respondendo por eles e sobre eles perante a Justiça e à população independentemente de quem vencer. Mas para além das bravatas, nada indica que, até agora, represente uma ruptura à ordem democrática ou planeje algo nesse sentido.

O mesmo não pode ser dito da chapa eleitoral PSL-PRTB e apoiadores que têm pautado a eleição com temas como a possibilidade de um "autogolpe", denúncias sem embasamento de fraude na urna eletrônica, ideias de reescrever a Constituição por um pequeno grupo de iluminados que não foram eleitos, censura a livros escolares, além de avisos de que as Forças Armadas podem tomar as rédeas da situação a depender do que aconteça.

Em qualquer país, isso seria um escândalo de grandes dimensões. Por aqui, parte da sociedade encarou com relativa normalidade ou indiferença, à exceção feita de milhões de mulheres. Humilhadas e cansadas da forma machista e misógina como são tratadas pelo candidato, elas lhe deram de presente uma alta taxa de rejeição e se organizaram nas redes e nas ruas para mostrar que não aceitam suas propostas de retorno ao século 19.

Muitos insistem em apontar um equilíbrio aonde ele não existe. Ao equiparar o PT, no outro prato da balança, dizendo que o partido também agirá de forma antidemocrática, lançam o debate num pântano em que todos estão cobertos de lama. O PT ainda precisa reconhecer muita sujeira e depurá-la, mas não essa lama que cheira a 1964.

José Roberto Toledo, da revista Piauí, foi muito feliz ao afirmar que o protesto das mulheres neste sábado foi histórico, menos para quem assistiu pela TV. Um mar de gente se esparramou pelo Largo da Batata, em São Paulo, e na Cinelândia, no Rio de Janeiro, além de dezenas de outras cidades no Brasil e no exterior, nos protestos das "Mulheres Unidas contra Bolsonaro", neste sábado (29).

Foi pífia a cobertura ao vivo. Manifestações com dezenas de milhares de pessoas, ocorridas neste sábado, não tiveram a mesma atenção e tempo que receberam outras manifestações anti-PT nos últimos dois anos.

Essa discussão não é sobre a forma como cada um vai governar se eleito e quais objetivos pretende alcançar. Estamos falando sobre a subversão do sistema democrático. Não é tampouco um debate sobre conservadores e progressistas, mas a respeito de civilização e barbárie. Por que o problema não é a direita e a esquerda vencerem, isso faz parte do jogo, mas a barbárie ser relativizada, ponderada e aceita. A democracia não pode aceitar quem a utiliza visando à sua própria destruição.

A negação à barbárie deve ser inegociável para que Bolsonaro volte a falar de suas propostas para o país, ao invés de continuar ameaçando a população. Como reduzir o desemprego sem rebaixar a proteção social no país, por exemplo? Ou como garantir paz sem promover uma guerra?

Por fim, parte da militância política aprendeu com suas lideranças que tudo que vem da imprensa é mentira e que nós, jornalistas, somos seres que existimos para distorcer a informação. A incitação contra os jornalistas, ao longo dos anos, foi sendo feito por pessoas de partidos da esquerda à direita, mas também por empresários, formadores de opinião, fazendeiros, membros do Poder Judiciário,

Nestas eleições, as ações de militantes de Bolsonaro contra jornalistas – mensagens nas redes sociais e em aplicativos, ligações intimidatórias, terror psicológico, perseguição e ataques verbais em espaços públicos, difamação através da difusão de notícias falsas, ameaças de morte e agressões físicas – têm sido constantes.

A publicação de reportagens que trazem denúncias contra o candidato, por mais embasadas que estejam, funcionam como uma senha para o ataque, organizado por páginas que agem como milícias digitais. Isso é criminoso e deveria ter um resposta rápida e forte por parte do Estado.

A intimidação sistemática a jornalistas e os traumas que isso provoca são sinais de que nossa democracia está convalescente. Qual o próximo passo? Camisas negras, como na Itália, saindo para punir, com sangue nos olhos e paus nas mãos, quem escreveu ou falou o que não deveria?

Temos um déficit de formação para a cultura política do debate e para a convivência com a diferença. Infelizmente, não somos educados, desde cedo, para saber ouvir, falar, respeitar e, a partir daí, construir consensos ou saber lidar com o dissenso. Não somos educados para a tolerância e a noção de limites. Parte dos brasileiros aprendeu que a violência é o principal instrumento de resolução de conflitos. Por falta ou fraqueza de instituições públicas ou sociais confiáveis que assumam esse papel, por achar que alguns possuem mais direitos que outros por conta de dinheiro ou de músculos, por alguma patologia que nunca consegui entender muito bem.

Ao final, se nada fizermos para qualificar esse debate, os gritos que ouviremos na janela serão, muito em breve, aqueles que pedem o nosso próprio sangue.

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.