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Leonardo Sakamoto

Eleição vai parir um país que não se importa em separar ficção da realidade

Leonardo Sakamoto

02/10/2018 12h49

Um dos piores legados desta eleição será o aumento da parcela da população que não faz questão de separar fatos de invenções – seja por que considera isso irrelevante, seja por que desistiu de tentar entender o que é real e o que não é devido ao caos, seja por que se beneficia com isso.

O cenário que Aviv Ovadya, chefe de tecnologia do Centro de Responsabilidade para Mídias Sociais do conceituado Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT), chamou de "Infocalipse" pode ameaçar a democracia por aqui, da mesmo forma como está fazendo em outras partes do mundo (há uma boa reportagem sobre ele feita pelo UOL). Se você não acredita em fatos e na razão e se guia apenas por falsidades e emoções, como vai tomar decisões racionais envolvendo sua vida e a da sua comunidade?

Parte das pesquisas e debates que tratam de notícias falsas e campanhas de desinformação encaram o cidadão que lê e compartilha conteúdos nas redes e aplicativos de mensagens de forma passiva, cujo comportamento depende de processo externos a ele.

Enumeram, como razões para tanto, a falta de educação formal, que dificulta a leitura e a interpretação de textos; a falta de capacitação para a mídia, o que impede a análise de discursos e a uma reflexão sobre o ato de compartilhar informação não checada; a ultrapolarização, que faz com que seres humanos normais se vejam em uma guerra política, encarando toda informação contra o "inimigo" como verdadeira; e a perda de relevância de instituições, que faz com que as pessoas desconfiem das informações que vêm do Estado e da imprensa, entre outros.

Isso faz com que pesquisas que apontam que os brasileiros são um dos povos que mais acredita em notícias falsas do mundo façam todo o sentido. A do Intituto Ipsos, por exemplo, diz que 62% dos entrevistados já caíram nelas, o que nos coloca na primeira posição, seguidos pela Arábia Saudita, Coreia do Sul, Peru e Espanha.

Contudo, mais assustador que o sujeito passivo que não percebe que o conteúdo que está difundindo é falso é a constatação de que parte da população sabe que está recebendo um boato e, conscientemente, passa adiante. Não para fortalecer sua identidade dentro do grupo ou ganhar likes e, portanto, respeito, mas para, de forma clara, atacar o "inimigo" – personificado na figura de um adversário político.

Participo de grupos no WhatsApp, sem relação pessoal, à direita e à esquerda, permanecendo como observador para efeito de pesquisa acadêmica. Desde que entramos em setembro, membros passaram a postar material, alertavam que aquilo era uma mentira, chegavam até a explicar o porquê (citando agência ou serviços de checagem), mas que, mesmo assim, devia ser usado por todos para atacar o outro lado. No que era saudado e prontamente atendido.

Esse comportamento ocorre em diversos grupos, mas naqueles ligados a fãs do candidato Jair Bolsonaro, a frequência é bem maior.

O ambiente tóxico para o debate digital que foi criado, paulatinamente, desde as eleições de 2014, passando pelo processo de impeachment até atingir as eleições deste ano, deixou marcas que dificilmente serão removidas quando o pior da tempestade passar. Se  passar, claro. E não por conta de ressentimentos e da ultrapolarização, que explode pontes e impede que ouçamos aqueles com os quais não concordamos. Mas por simplesmente haver um naco da população para o qual as consequências éticas de não separar fato e boato deixou de existir. Acreditam na lei do mais forte, o que significa nessa era digital que aquele que conseguir impor sua vontade, usando qualquer método, vence.

Faz parte de nosso aprendizado para a vida privada e pública considerar a difusão de falsidades como algo negativo e de informações verídicas como uma coisa boa. Mesmo assim, desde sempre, o ser humano mentiu, e faz isso várias vezes por dia, para garantir benefícios para si mesmo e seu grupo ou para proteger alguém.

A partir do momento em que o processo de repassar, conscientemente, mentiras é feito de forma massiva, com a aceitação coletiva dessa difusão em nome de um objetivo político, nada impede que tal comportamento estenda-se ao restante das dimensões das relações sociais. A difusão de fatos falsos passa a ser encarado como o novo normal, preenchendo de lama a esfera pública.

Com isso, a confiança das pessoas nas pessoas e das pessoas nas instituições cai ainda mais, gerando conflitos sociais. A divisão da população resultando disso fortalece ainda mais políticos que se colocam como garantidores da ordem em uma sociedade em constante ameaça.

Não importa quem ganhe as eleições em outubro, teremos grande dificuldade de nos comunicarmos a partir do ano que vem. Espero que as previsões de Aviv Ovadya não se concretizem, apesar de considerar cada vez mais um cenário distópico como o retrato de nosso futuro imediato.

A Convenções de Genebra são tratados firmados para definir direitos e deveres de combatentes em tempos de guerra, o que guiou o desenvolvimento do direito humanitário. Esse tipo de acordo costuma ser firmado após longos períodos de atrocidades e horrores serem presenciados, como forma de evitar que não se repitam. Com a corrosão de elementos que nos mantém unidos e reconhecendo no outro o direito à dignidade, pergunto-me se teremos que nos reunir para construir documentos semelhantes para batalhas digitais em um mundo pós-Infocalipse. Se houver mundo depois disso, claro.

 

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.