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Leonardo Sakamoto

Caixa 2.0 no "Zap" é risco antigo, mas TSE preferiu não enxergar

Leonardo Sakamoto

19/10/2018 12h01

"Eu sei que fere a legislação. Mas eu não tenho controle." A frase foi dita por Jair Bolsonaro ao ser questionado sobre a reportagem de Patrícia Campos Mello, da Folha de S.Paulo, que mostrou a contratação por empresas, entre elas a Havan, do disparo de milhões de mensagens de WhatsApp que beneficiariam a campanha do candidato. O que é ilegal e poderia configurar caixa 2.

Mas a frase poderia ter saído da boca da ministra Rosa Weber, presidente do Tribunal Superior Eleitoral. A instituição, que antes das eleições, prometeu ser a guardiã da lisura do pleito contra o risco de manipulação do debate público, assiste praticamente passiva ao que acontece. E ressalta que não quer interferir na liberdade de expressão.

A questão contudo não é essa. A própria sociedade civil pediu ao TSE que não se metesse a decidir o que é mentira quando o tribunal começou a lidar com o tema – pior do que um país envenenado por notícias falsas é uma democracia assassinada por um Estado que decida o que é verdade. Porém, o conteúdo das mensagens falsas é problema menor que as estruturas milionárias bancadas montadas para, via WhatsApp e redes sociais, manipular a opinião pública nas eleições. E isso era largamente conhecido. Se houve avanços significativos pelo lado do Facebook, o mesmo não pode ser dizer de seu aplicativo de mensagens e do próprio Estado brasileiro.

Em junho de 2016, ou seja, mais de dois anos antes desta campanha eleitoral e da campanha municipal, publiquei o texto "Sem doações de empresas, eleições devem ampliar guerrilha anônima na rede". Naquele momento, quem acompanhava política na rede já sabia que consultorias digitais – como a organizada para atacar o PT, denunciada na reportagem da Folha de S.Paulo – seriam usadas por grandes empresas para continuar financiando seus candidatos. Os serviços contratados seriam de desconstrução da imagem de seus adversários por baixo do pano, via um grande "caixa 3" ou "caixa 2.0", como queiram, conforme me explicaram na época.

Não é questão de futurologia, mas de capacidade dos órgãos públicos de analisar a conjuntura e traçar perspectivas de ação. Em um mundo em transformação rápida, as políticas não devem ser adotadas olhando para trás, mas para frente. Ficar preocupado com cavaletes e santinhos enquanto as pessoas não desgrudam da tela do smartphone é, no mínimo, inocente.

O mais irônico é que o aumento da contratação de consultorias digitais por grandes empresas para campanha é uma das consequências do fim do financiamento empresarial de campanhas, decidida pelo Supremo Tribunal Federal, em setembro de 2015, através do julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade 4650 – que foi posteriormente confirmada pelo Congresso Nacional. Vale lembrar que, além de Rosa Weber, os ministros Luís Roberto Barroso e Edson Fachin são integrantes do TSE e do STF ao mesmo tempo e participaram dos debates sobre o financiamento eleitoral.

Isso deveria estar sendo considerado há três anos, portanto, buscando formas de mitigar e de regular processos que não passassem pela censura pura e simples, mas agissem contra estruturas que tentassem burlar as proibições de doações empresariais de forma inteligente. Até porque tudo o que está acontecendo hoje também ocorreu nas campanhas nacionais e estaduais de 2014, em menor tamanho. O monstro já tinha nascido, mas ainda engatinhava.

Não é correto dizer que ninguém sabia o que iria acontecer ou que não teria controle sobre a zorra digital que se tornou a campanha eleitoral por conta da manipulação digital. Na verdade, quem fiscaliza não se importou. E, diante disso, quem se beneficia simplesmente sorri.

As instituições brasileiras não estão funcionando normalmente há tempos. Além do esgarçamento causado pelo processo de impeachment e seus desdobramentos, ela precisaria de uma atualização de software para compreender que o mundo sobre o qual trata em suas ações, debates e julgamentos não existe mais.

Segue a íntegra do meu texto publicado em 14 de junho de 2016. Serve exatamente para hoje:

A proibição de doações de pessoas jurídicas a campanhas, que passará pelo seu primeiro teste nas eleições municipais deste ano, tem potencial para contribuir com a mudança no cenário político brasileiro, diminuindo a influência de grandes empresas que, na prática, "contratavam" políticos através de polpudos financiamentos. Boa parte dos escândalos de corrupção no país nasceram dessa relação de luxúria e lascívia, sem medo de dar beijo na boca e deixar marcas no pescoço, entre corporações e seus candidatos. Ou seja, há uma boa expectativa para a medida decidida pelo Supremo Tribunal Federal no ano passado.

Mas há um efeito colateral que não vem sendo discutido, mas poderá ter uma influência central. Com a proibição de financiamento direto, candidaturas devem combinar com empresas interessadas em apoia-las para que arquem com serviços digitais de construção e desconstrução de reputações via internet. Esses serviços tiveram um papel importante nas últimas eleições gerais de 2014 com a transformação da rede em palco de batalha em que a "verdade" caiu morta.

Há empresas que atuam na construção de reputações que devem continuar sendo contratadas diretamente pelas campanhas. De acordo com o proprietário de uma delas com quem conversei, o custo benefício de sua atuação é maior que o de propagandas na TV. Vale lembrar que o teto para gastos eleitorais será de 70% da campanha mais cara para o mesmo cargo em 2012 ou de 50% – no caso das cidades com segundo turno.

Mas doadores pessoa jurídica também podem vir a bancar os custos de empresas que façam esse trabalho de construção e também o de desconstrução da reputação de um candidato adversário. Por ser feito nas sombras, não ter custos expressivos e nem passar pela campanha e seus representantes, esse financiamento pode ser invisível à análise das contas de campanha pelo poder público. Seria uma espécie de "Caixa 3".

Mesmo que o Ministério Público e a polícia tivessem aumentada sua capacidade de investigação em crimes cibernéticos para que "fazendas" de perfis falsos que cometam crimes digitais possam ser identificadas e, com elas, punir o financiamento indireto de campanha, os grupos profissionais que prestam esse tipo de serviço estão sempre na vanguarda tecnológica e não são pegos facilmente.

O rastreamento de um perfil falso nem sempre é simples. Muitas vezes, atuam via acesso remoto – através de seus computadores, eles se conectam a uma máquina virtual que está em outro país (normalmente que não possui legislação para liberação de informações compatível com as leis brasileiras). Nada fica registrado no terminal por aqui, garantindo segurança e anonimato. Opta-se também por utilizar sistemas que interpõem dezenas de roteadores ao servidor de origem. Ou seja, mesmo que consigam descobrir o servidor de postagem, ele não é o que foi utilizado realmente pelo operador.

Ao contrário do que se pensa, os trolls raivosos que babam e cometem ignomínias são uma parte pequena e boba desse processo. Os profissionais não ficam atacando loucamente o adversário, mas são guiados por pesquisas comportamentais e pela análise da estratificação da população, desenvolvem equipes de "semeadores de ideias" para atingir os eleitores e usam softwares capazes de detectar a difusão de opinião na web, para agir imediatamente, barrando o que é ruim e promovendo o que é bom.

Atuando com base em mapeamentos digitais das páginas que tratam de política, sejam elas de veículos jornalísticos, pessoas ou instituições, e do comportamento delas, os profissionais dessas empresas se conectam a essas páginas e a listas de discussão, debatendo – de forma racional ou emotiva – e influenciando o voto.

Desde as eleições de 2014, tenho acompanhado esse tema e conversado com profissionais dessa área. É um mundo à parte, ao qual a maioria de nós nem imagina existir.

Há todo tipo de empresa de consultoria digital que presta esse tipo de serviço, das que não difamam ou caluniam e apenas usam informações reais para desconstruir adversários, até aquelas que inventam o tipo de armamento.

Em uma entrevista que fiz com o diretor de uma empresa especializada na construção de reputações na internet, ele explicou que fora dos períodos eleitorais, trabalha para grandes marcas que querem construir a reputação de seus produtos junto ao público na rede usando esses perfis falsos. Ou seja, as corporações já possuem acesso a algumas dessas empresas. Basta um aditivo ao contrato para que "serviços de outra natureza" sejam prestados no segundo semestre deste ano.

E, falo por experiência própria de quem já sofreu difamações dessa natureza, que a atuação de algumas "consultorias digitais" contratadas por grandes grupos empresariais fazem um serviço sujo e de difícil detecção.

A primeira experiência de eleições sem doações corporativas e institucionais também pode ser marcada pelo estabelecimento de uma guerra campal sem nome ou rosto na rede. Talvez financiada, em parte, pelas mesmas corporações e instituições com o objetivo de manterem seu vínculo com determinado candidato. E o controle sobre a coisa pública.

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.