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Leonardo Sakamoto

Saída de médicos cubanos pode gerar primeira crise social de Bolsonaro

Leonardo Sakamoto

14/11/2018 23h55

Foto: Adriano Machado/Reuters

Com a saída não-planejada dos profissionais cubanos do programa Mais Médicos, Jair Bolsonaro vê a primeira grande crise social de seu governo – que ainda nem começou – entrar em gestação.

Ele tem o direito, como presidente eleito, de propor mudanças no acordo com o governo de Cuba e, quando assumir, atuar por sua revogação. Mas, na política, declarações e ações que não pesam as consequências sociais e econômicas têm um custo. Que, neste caso, será pago, sem aviso prévio, por 30 milhões de brasileiros que se acostumaram a ter um médico à sua disposição. E, sinceramente, não se importam se ele fala português ou "portunhol".

"Condicionamos a continuidade do programa Mais Médicos à aplicação de teste de capacidade, salário integral aos profissionais cubanos, hoje maior parte destinados à ditadura, e a liberdade para trazerem suas famílias. Infelizmente, Cuba não aceitou", afirmou Bolsonaro, pelo Twitter, nesta quarta (14).

O governo da ilha avisou que está retirando seus quase 8,4 mil médicos do Brasil (mais de 45% do Mais Médicos) até o final do ano por conta de declarações de Bolsonaro que considerou agressivas. A saída, inesperada, acendeu a luz amarela em municípios e Estados que dependem do programa para garantir um mínimo de dignidade à população, provocando pânico em prefeitos.

Criado em 2013 pelo governo Dilma Rousseff, o Mais Médicos convocou profissionais brasileiros e estrangeiros para trabalharem em locais carentes de atendimento pagando a eles uma bolsa. Se por um lado, isso gerou o descontentamento por parte dos médicos brasileiros (com argumentos que vão do fato de que o programa não resolve o déficit estrutural, material e de equipamentos até o corporativismo), por outro as manifestações de apoio mostram que ele foi bem recebido pela camada mais pobre da população.

"Fiz supervisão de médicos cubanos em área indígena. Nesses locais, o impacto foi muito grande, tanto quanto nos rincões do país. A quantidade de consultas aumentou de 1000% a 2000%, conta Marco Antonio Silva dos Santos, médico de Família e Comunidade e especialista em saúde indígena. "Não há perspectivas dessas vagas serem ocupadas por médicos brasileiros e de outras nacionalidades. O impacto será gigantesco. Haverá uma desassistência médica muito grande."

Marco, que hoje atua na Unidade Básica de Saúde (UBS) Real Parque, na capital paulista, para atender a população indígena Pankararu que vive nessa comunidade, trabalhou na região Norte do país. "No Amapá e no Norte do Pará, havia sete vagas para médicos pagando R$ 14 mil cada que não eram preenchidas em 2012. Ninguém queria ir para lá", explica. Após o programa, a assistência médica chegou.

Situação trabalhista

O acordo com a instituição cubana responsável pelos profissionais, firmado via Organização Panamericana de Saúde (Opas), prevê que um "imposto" seja cobrado dos médicos que estiverem em missão no Brasil. O valor líquido repassado é de R$ 3 mil, enquanto o governo cubano fica com R$ 8,8 mil, pagos mensalmente – menos uma taxa operacional que fica com a Opas. Além desse valor, os médicos também recebem auxílio-moradia e auxílio-alimentação das prefeituras.

Essa forma de remuneração gerou polêmica, uma vez que os demais participantes do programa, brasileiros e estrangeiros, recebem o valor integral de R$ 11.865,60, via um contrato individual e não coletivo. De um lado, defensores desse modelo apontam que ele é correto por ser o pagamento por uma missão médica contratada de outro país e que o valor da dedução não é tão maior que os impostos sobre renda cobrados em alguns países. De outro, críticos afirmam que o ideal seria que os médicos recebessem o mesmo que profissionais de outras nacionalidades e, caso necessário, o Brasil pagaria, à parte, pelo serviço da empresa cubana de saúde.

Uma investigação conduzida pela Procuradoria Regional do Trabalho da 10a Região considerou que o modelo de remuneração representa discriminação de trabalhadores cubanos, uma vez que, no Brasil, a lei garante a isonomia salarial e direitos trabalhistas.  Em minha opinião, o MPT está correto, como já defendi aqui anteriormente. O governo Dilma errou ao ter firmado o acordo nesses moldes, em um formato que fere a legislação brasileira – situação que já deveria ter sido corrigida.

Contudo, a mesma investigação do Ministério Público do Trabalho afirmou que, nem de longe, a situação assemelha-se a trabalho escravo – como tachou Bolsonaro, nesta quarta (14), e outros críticos ao programa desde 2013. O MPT, junto com o Ministério do Trabalho, já libertou mais de 53 mil pessoas, desde 1995, e, portanto, está mais qualificado que o presidente eleito para afirmar o que se enquadra ou não nesse crime. De acordo com o artigo 149 do Código Penal, isso se configura por trabalho forçado, servidão por dívida, condições degradantes ou jornada exaustiva.

Entrevistei dois médicos cubanos que faziam parte do programa e atuavam em um município na Grande São Paulo. Bem quistos pelos moradores no posto de saúde, rechaçaram as denúncias de que estariam submetidos a esse tipo de exploração. "Escravos não têm esses privilégios", afirmou um deles, Mario. Ele disse que como sua família tem à disposição um sistema educacional e de saúde gratuitos em Cuba, que funcionam, e que fez faculdade de medicina, residência e mestrado sem ter que pagar pelos cursos, livros ou materiais, acha justo colaborar para que esse sistema continue funcionando.

Não existe qualquer impedimento legal para que os médicos cubanos tragam suas famílias enquanto estiverem no Brasil, como Bolsonaro afirmou. De acordo com a lei 12.871, de 22 de outubro de 2013, que regulamenta o programa, não apenas vistos podem ser concedidos aos dependentes como eles também estão autorizados a trabalhar formalmente no país. A resolução de entraves para que isso aconteça deveria contar com uma ação firme do governo, porque se trata de uma questão de direitos humanos que o país tem a obrigação de proteger, e que passa, necessariamente, pelos canais da diplomacia.

E, ao contrário do que disse o presidente eleito, os médicos devem comprovar sua diplomação e habilitação para exercer a medicina em seu país de origem. Hoje, os contratados pelo programa que se formaram no exterior são dispensados apenas de revalidar o diploma por três anos. Entidades de classe médicas defendem a revalidação obrigatória – o que a maioria dos médicos cubanos não seria contra, mas seu governo sim.

Sobram vagas de médicos em locais pobres

Mudanças no Mais Médicos eram esperadas com a entrada de um governo crítico ao programa e de extrema direita. O que não era previsto era que Bolsonaro fosse entrar em atrito com Cuba logo de cara, impactando negativamente um programa consolidado e enraizado em mais de 3 mil cidades, sem ter uma alternativa para preencher o vazio deixado.

Como o Brasil vai garantir que, em um curto espaço de tempo, os postos hoje ocupados pelos médicos cubanos sejam preenchidos por brasileiros ou por pessoas de outras nacionalidades é uma incógnita. Até porque, nas últimas seleções, sobraram vagas – elas são primeiro preenchidas por brasileiros que estudaram aqui e no exterior e, depois, por estrangeiros.  O Ministério da Saúde avisou que abrirá edital – lembrando que o governo Temer levou dois anos para reduzir os cubanos no programa de 11,4 mil para 8,4 mil. Outra possibilidade que está sendo discutida é propor que alunos recém-formados que cursaram medicina apoiados pelo Fies sejam alocados nesses postos, o que é uma ação complexa.

Temos mais de 440 mil médicos com registro ativo no Conselho Federal de Medicina, mas eles estão concentrados nas grandes cidades e capitais. Incentivos para interiorizar essa mão de obra incluem melhorar a estrutura e garantir remuneração mais atrativa. Mas mesmo quando localidades pobres contam com recursos para pagar um médico regular, não chegam a preencher vagas, como foi o caso do atendimento a indígenas descrito acima. Isso sem contar que poucos são capacitados para trabalhar na atenção básica de saúde, diferentemente da maioria dos cubanos do Mais Médicos.

"Temos uma massa amorfa de médicos no Brasil, não temos um grupo organizado para que dê conta de toda a população. A vinda dos cubanos tem um potencial transformador porque entraram em um lugar em que existe uma falta importante", afirma Janos Valery Gyuricza, médico de Família e Comunidade e que também foi supervisor de cubanos no programa Mais Médicos. "Não acho que isso seja a única coisa que deva ser feita, é uma ação emergencial, mas que tem o potencial de mudar o entendimento da população em geral sobre o que é ter um sistema de saúde."

E nisso reside um ponto importante: o Mais Médicos é um programa emergencial, não era para durar indefinidamente. O objetivo era paulatinamente substituir estrangeiros por novos profissionais formados em medicina de Família e Comunidade. A mudança, de acordo com Janos, passa por alterar a matriz da formação de especialistas. "Hoje, ela é regulada pelo mercado, não pela demanda do sistema", explica. Há muitos cirurgiões sendo formados anualmente e poucos médicos de família para atuar na atenção básica de saúde. No total, representam menos de 1% dos profissionais.

O problema é que isso não ocorreu da forma prevista por falta de gestão e de recursos e não há como substitui-lo com eficácia no curto prazo. A própria lei que trata do Mais Médicos prevê a obrigatoriedade que o programa de residência em Medicina Geral de Família e Comunidade seja etapa obrigatória para uma série de outras especialidades. Isso envolve a garantia de estruturas física, como postos de saúde, e organização da estrutura médica, como supervisores para esses novos profissionais e recursos a fim de suprir a falta de residentes nos hospitais decorrente da alocação deles na atenção básica.

Como alocar mais recursos para a Saúde com a vigência da Emenda do Teto dos Gastos, aprovada por Michel Temer, que limita o aumento de gastos públicos acima da inflação por 20 anos, é outra incógnita.

Bolsonaro, como dito no início, pode propor a mudança de rumo na política de saúde da forma que achar melhor. Mas cavalos de pau como esse, com o carro andando, podem terminar com mais mortos e feridos sem atendimento.

O presidente e o autor deste texto já ficaram internados em hospitais públicos, mas também recorrem ao serviço de bons hospitais particulares. A saída dos cubanos não será, portanto, sentida por nós ou por nossa classe social, mas pelas pessoas que não tinham acesso a médicos e agora têm. Ao final, diante da reclamação dessa população mais pobre, que, em sua maioria, não foi seu eleitorado, mas o de seu adversário, talvez Bolsonaro tenha que fazer o impensável: pedir à Cuba para aceitar uma transição programada.

O problema é que o novo chanceler, anunciado nesta quarta, fã de Donald Trump, ao defender que "o globalismo é a globalização econômica que passou a ser pilotada pelo marxismo cultural", talvez não seja a melhor pessoa para negociar isso com a ditadura cubana.

Post atualizado às 12h54 do dia 15/11/2018 para inclusão de informação.

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.