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Leonardo Sakamoto

Caso João de Deus: Fé e família não são espaços livres da violência sexual

Leonardo Sakamoto

12/12/2018 17h59

João de Deus reaparece após denúncias de assédio. Foto: Walterson Rosa/Folhapress

O número de mulheres que denunciaram o médium João de Deus por violência sexual ao procurarem-no para cura espiritual, na Casa de Dom Inácio de Loyola, em Abadiânia (GO), não para de crescer. A cada história relatada, outras tomam coragem de vir a público – o Ministério Público de Goiás já registrou mais de 200 atendimentos. Alguns casos recentes, outros, de décadas atrás.

Os primeiros depoimentos foram dados ao jornal O Globo e ao programa de entrevistas de Pedro Bial, na TV Globo. João de Deus e sua equipe, que atendem milhares de brasileiros e pessoas de outras nacionalidades todas as semanas, negam todas as acusações.

Relatos como esses chocam duplamente por que o senso comum tem dificuldade de admitir que alguém que vá buscar alívio para suas dores e, portanto, está vulnerável, seja vítima dessa forma de violência. Ainda mais por parte de uma figura que afirma fazer o bem e estaria acima de suspeitas. Para além do ato ignóbil em si, é uma profunda quebra de confiança.

Tal como os abusos sexuais de crianças e adolescentes perpetrados por padres católicos e acobertados por bispos por décadas e que, até hoje, tiram o sono do Vaticano, pois não param de surgir. Ou como as pacientes de Roger Abdelmassih, um dos principais médicos especialistas em reprodução humana do país, que foi condenado a 181 anos pelos 48 estupros de suas pacientes, em 2010. Ficou um bom tempo foragido, permaneceu preso por três anos e, agora, está em prisão domiciliar.

Dados do Ministério da Saúde mostram que, entre 2011 e 2017, foram notificados 58.037 casos de violência sexual contra crianças e 83.068 contra adolescentes. Entre as crianças, o principal tipo de violência foi o estupro (62%), seguido do assédio sexual (24,9%). O mesmo ocorreu entre os adolescentes, com estupro à frente (70,4%) e assédio sexual (19,9%).

O dado mais relevante é que, entre as crianças, os perpetradores da violência são os próprios familiares (37%), seguidos por amigos e conhecidos (27,6%), desconhecidos (6,5%). A categoria "outros" representa 28,9%. Enquanto que, entre os adolescentes, os amigos e conhecidos (27,4%) estão à frente, seguidos pelos próprios parceiros (27,1%) e por um empate entre desconhecidos (21,8%) e familiares (21,7%). "Outros" perfazem 12,3%.

A maioria dos casos de violência sexual contra crianças (69,2%) e adolescentes (58,2%) são cometidos na própria residência das vítimas. Ou seja, no local que elas consideram seguro.

Ironicamente, parte do foco do debate público sobre violência sexual é centrado na falsa ideia de que o perigo, seja ele contra crianças e adolescentes, seja contra adultos, vem apenas daquilo que é desconhecido ou de fora. E que o porto seguro é a família e a religião, enquanto a violência vem da arte, da cultura, da educação.

As estatísticas e grandes casos de comoção nacional mostram o contrário, que também vêm daqueles em quem mais confiamos – líderes espirituais, médicos, padres, pais, tios, avôs, irmãos, primos, amigos. E, por vezes, denúncias são soterradas em montanhas de silêncio para manter as aparências. Isso quando são levadas a sério.

A verdadeira "ideologia de gênero" é martelada cotidianamente em nossas cabeças para que acreditemos que homens valem mais do que mulheres, que naturaliza a violência contra a mulher e faz com que a palavra do homem tenha mais valor que a dela. Portanto, o que é chamado de "ideologia de gênero" é justamente o questionamento da ideologia de gênero.

Essa ideologia contemporiza quando a mulher é transformada em objeto de prazer para ser violentado dentro da própria casa e alvo de ejaculação em trens e ônibus; chama o assédio sexual e o desrespeito de "simples elogio" ou "brincadeira"; declara o corpo delas é propriedade masculina, tentando proibir até abortos em caso de estupro; faz com que elas se sintam culpadas pela violência que sistematicamente sofrem; torna o disparate tão normal a ponto de nunca ser preciso pedir desculpas, mas, pelo contrário, faz com que esperemos delas a desculpa pela nossa agressão.

Ter coragem de vir a público e denunciar é uma ação poderosa. Nós homens precisamos ouvir e entender que nosso discurso e nossas atitudes violentas não cabem mais no mundo em que estamos. Na verdade, nunca couberam, mas nós somos pródigos em calar aquilo que nos desagrada.

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.