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Leonardo Sakamoto

A milícia, com a benção de uma política corrupta, executou Marielle Franco

Leonardo Sakamoto

14/12/2018 12h56

Marcelo Freixo carrega caixão com o corpo de Marielle Franco. Foto: Ricardo Moraes/Reuters

O secretário de Segurança Pública do Rio, general Richard Nunes, afirmou que as investigações apontam que Marielle Franco foi assassinada porque interferiu no interesse de milicianos sobre o loteamento de terras na periferia da capital, em entrevista ao jornal O Estado de S.Paulo, nesta sexta (14). A polícia teria identificado os suspeitos de planejar e matar e estaria reunindo evidências. Mas até as provas serem apresentadas, a declaração do general sobre a motivação continua sendo uma hipótese.

Milícias já controlam um território maior que o tráfico de drogas no Rio de Janeiro, segundo o deputado estadual Marcelo Freixo (PSOL-RJ). Nesta quinta (14), veio a público a informação de que a Polícia Civil descobriu (mais) um plano para o seu assassinato – que aconteceria neste sábado, exatamente pelas mãos de milicianos.

A execução seria realizada durante uma agenda com militantes e professores da rede particular de ensino no Rio. Um policial militar e dois comerciantes foram citados em um relatório como suspeitos de envolvimento no plano. Seriam do mesmo grupo miliciano da Zona Oeste da capital carioca que está sendo investigado, pela Divisão de Homicídios, por conta da execução da vereadora e ativista dos direitos humanos Marielle Franco. Sua morte e a de seu motorista, Anderson Gomes, completam, nesta sexta, nove meses.

Boa parte das milícias, como se sabe, está dentro das próprios forças policiais. Freixo, que presidiu a CPI das Milícias na Assembleia Legislativa do Rio, resultando no indiciamento de 225 pessoas, havia explicado a este blog que você só enfrenta a milícia se tirar o poder econômico delas. Para tanto, é necessário o uso intensivo do serviço de inteligência, que possa identificar quem das forças de segurança estão dentro dessas organizações criminosas. O que não se faz com ocupação de território, ação muitas vezes inócua.

Ele lembra que não há milícia no Leblon e em Ipanema, mas nas Zonas Oeste e Norte. Pois esses territórios não interessam a um modelo de cidade elitizado e é ocupado por milícias. O debate de segurança pública passa, portanto, por discutir para quem a cidade vai funcionar, com quem a cidade vai funcionar e pela radicalização de um processo de democracia. Chamando as próprias comunidades a participar das decisões sobre seu futuro e não impondo soluções de cima para baixo que não geram mudanças no longo prazo.

Milícia e tráfico já vivem uma simbiose de métodos e territórios no Rio de Janeiro, tanto que – não raro – é difícil diferenciá-los. Mas tudo é tão escrachado e visível que vemos nas redes sociais apoiadores de milicianos – sim, eles existem, aos montes, inclusive em altos cargos da política – que chamam Freixo de frouxo e covarde por andar com segurança pessoal. Ou seja, por tomar medidas para continuar vivo.

O escracho é tão grande quanto a defesa pública – por parte de autointitulados "cidadãos de bem" – dos métodos aplicados pelas milícias, de tortura e morte, de qualquer pessoa que for contra a ocupação mafiosa dos bairros pobres da Zona Oeste do Rio. Ocupação que usa a torpe justificativa de estar garantindo "segurança" contra os criminosos quando são eles próprios os representantes do crime.

A ditadura militar é revivida não apenas quando inconsequentes – que usam sua liberdade de expressão contra a liberdade de expressão – vão às ruas pedir "intervenção militar constitucional", vulgo golpe. Mas também quando alguém é torturado e morto pelas mãos de pessoas treinadas pelo Estado. Ou seja, por policiais criminosos ou pela sua versão organizada, as milícias – que, aliás, ameaçam os agentes de segurança honestos que ficam encurralados entre os bandidos e os mocinhos-bandidos.

Não deixa de ser irônico, portanto, que a informação sobre o plano de assassinato de Freixo por esse pessoal tenha vindo a público no mesmo dia em que o Ato Institucional número 5, que tirou liberdades individuais e abriu caminho para a tortura e morte de opositores, tenha completado 50 anos.

Durante as eleições, foi constante ver candidatos a diferentes cargos estufando o peito e prometendo letalidade policial e armamento à população para resolver a violência, deixando a (articulação da) inteligência em segundo plano. Encheram a boca para falar da corrupção na política. Mas o que não disseram é que, se nossa corrupção é estrutural, a polícia se torna reflexo do que acontece na política.

Freixo cita que "em 82% dos homicídios do Rio de Janeiro, a arma vem do mercado legal e, em algum momento, vai para o mercado do crime". O trabalho de inteligência para saber quantas armas estão sendo desviadas para o mercado do crime, contudo, é muito precário. "A polícia apreende armas, que são desviadas para os próprios criminosos", afirmou também ao blog a socióloga Julita Lemgruber, coordenadora do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania da Universidade Cândido Mendes. Segundo ela, que foi diretora do Departamento do Sistema Penitenciário e ouvidora da polícia do Estado do Rio de Janeiro, esses desvios poderiam ser facilmente investigados se houvesse vontade política."Com visitas regulares das corregedorias aos estacionamentos do batalhões de polícia é possível verificar quem possui carros que não são compatíveis com os salários e, a partir daí investigar a origem do dinheiro, por exemplo."

Com uma política corrupta seria estranho se parte da estrutura de policiamento também não fosse. Diante de indagações de como reduzir essa corrupção e como atacar milícias formadas por policiais e militares, além de privilegiar os agentes de segurança honestos, garantindo sua integridade física e a de suas famílias, muitos políticos calam-se, mostrando que falta vontade, conhecimento e coragem. Ou sobra rabo preso.

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.