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Leonardo Sakamoto

ONU aprova pacto para tratar migrante como gente. Bolsonaro quer país fora

Leonardo Sakamoto

20/12/2018 19h51

Roupas são queimadas durante o conflito em Pacaraima (RR) entre brasileiros e venezuelanos. Foto: Avener Prado/Folhapress

O Pacto Global para uma Migração Segura, Ordenada e Regular foi aprovado, nesta quarta (19), pela Assembleia Geral das Nações Unidas. Foram 152 votos a favor, cinco contra (Estados Unidos, Hungria, Israel, Polônia e República Tcheca) e 12 abstenções (Argélia, Austrália, Áustria, Bulgária, Chile, Itália, Letônia, Líbia, Liechtenstein, Romênia, Singapura e Suíça). O Brasil votou favoravelmente ao pacto, seguindo a tradição de sua diplomacia. Deve nele permanecer, ao menos, até 31 de dezembro, pois o presidente eleito Jair Bolsonaro voltou a afirmar, nesta terça (18), que vai retirar o país do rol de signatários. 

Declarou também que irá dificultar a entrada de imigrantes no Brasil. Usou como exemplo a França. Para ele, a migração tornou "simplesmente insuportável" viver em algumas regiões daquele país. "Parte da população, parte das Forças Armadas, parte das instituições começam a reclamar no tocante a isso. Nós não queremos isso para o Brasil." 

Foi ironizado pelo embaixador francês nos Estados Undios, Gérard Araud, que postou em sua conta no Twitter: "63.880 homicídios no Brasil em 2017, 825 na França. Sem comentários".

O pacto da ONU não é vinculante, mas voluntário, quase como uma carta de princípios, com recomendações que não impõem políticas de migração a cada Estado. Demanda que não sejam realizadas deportações coletivas, nem discriminação na análise de vistos, além de afirmar que a prisão do migrante deveria ser o último recurso. Também solicita que os países busquem garantir saúde, educação e informação a eles.

Abandonar um acordo relacionado a um dos mais graves problemas contemporâneos e que não é obrigatório serve apenas a objetivos políticos internos. 

Afinal, mais de 3 milhões de brasileiros moram fora do país, de acordo com o Itamaraty, enquanto 750 mil estrangeiros vivem por aqui – números da Polícia Federal. Temos menos de 0,4% de população estrangeira, enquanto a média mundial é 3,4%.

Um dado importante: dos 127.778 mil venezuelanos que ingressaram no Brasil entre 2017 e julho de 2018 pela principal porta de entrada, Pacaraima (RR), 68.968 já deixaram o país – os dados também são da Polícia Federal. A crise econômica brasileira também espantou muitos trabalhadores estrangeiros. Em suma, mesmo com as últimas ondas de migração de venezuelanos e haitianos, ainda assim o número de pessoas que hospedamos é menor do que a de nossos hóspedes lá fora. 

Se queremos que nossos compatriotas sejam bem tratados lá fora, temos também que garantir um tratamento digno e humano por aqui.

Os migrantes estrangeiros são acusados de roubar empregos, trazer violência, sobrecarregar os serviços públicos. É mais fácil jogar a responsabilidade em quem não tem voz (apesar de darem braços para gerarem riqueza ao país e pagarem impostos com seu consumo) do que criar mecanismos para trazê-los para o lado de dentro do muro que os separa da dignidade – o que, inclusive, geraria mais recursos através de outros impostos.

Grande parte dos migrantes faz o trabalho sujo que poucos querem fazer. Na França e no Brasil. Limpam latrinas, costuram roupas, recolhem o lixo, extraem carvão, processam gado, constroem casas. Até porque os países que recebem esses trabalhadores ganham com sua situação de subemprego e a não garantia de todas as proteções. O próprio Bolsonaro, em uma reunião com parlamentares no dia 12 de dezembro, afirmou que a legislação trabalhista tem que se aproximar da "informalidade". Pois isso já acontece – compulsoriamente – com milhares de migrantes pobres por aqui.

A porosidade de fronteiras, afinal, ajuda na regulação do custo da mão de obra global.

Em grande cidades como São Paulo, o preconceito perdeu a vergonha, saiu das sombras e passou a operar à luz do dia. Ataques violentos a bolivianos e haitianos foram registrados nos últimos anos. Pedidos de devolução de refugiados sírios são lidos nas redes sociais. Pilhas de roupas de venezuelanos são queimadas durante conflitos em Roraima. O que nos lembra que o problema não é com os migrantes ricos e brancos, mas os migrantes que saem em busca de uma vida melhor ou os refugiados econômicos, sociais e ambientais. Ou seja, com pobres e – claro – negros. 

Se, por um lado, muitos brasileiros abrem os braços para os migrantes e os refugiados, por outro, há quem os escraviza. Bolivianos, paraguaios, haitianos, chineses, venezuelanos, filipinas já foram resgatados pelo poder público em oficinas de costura, frigoríficos, empresas de construção civil, mineradoras, lanchonetes, casas de família. Nossa roupa barata e  comida baratas, não raro, custam caro para muita gente.

"Não somos contra imigrantes, mas, para entrar no Brasil, tem que ter um critério bastante rigoroso. Caso contrário, no que depender de mim, não entrarão", afirmou o presidente eleito também nesta terça.

Vale lembrar que, em 2015, durante uma entrevista para o jornal Opção, o então deputado federal Jair Bolsonaro afirmou: "Não sei qual é a adesão dos comandantes, mas, caso venham reduzir o efetivo [das Forças Armadas] é menos gente nas ruas para fazer frente aos marginais do MST, dos haitianos, senegaleses, bolivianos e tudo que é escória do mundo que, agora, está chegando os sírios também. A escória do mundo está chegando ao Brasil como nós não tivéssemos problema demais para resolver". 

Na verdade, temos critérios rigorosos, que estão previstos na nova Lei de Migrações, de autoria do então senador e, hoje, chanceler, Aloysio Nunes Ferreira, aprovada em 2017. Mas o presidente eleito e parte de seus seguidores mais radicais discordam disso e acreditam que estamos em risco. Sim, estamos. Em risco de perder todas vantagens econômicas, sociais, culturais, humanas trazida pela migração e sua diversidade. 

O Brasil não é o local mais acolhedor do mundo para estrangeiros, apesar de ter sido construído com base em seu suor e sangue. Mentimos para nós mesmos para fingir que, como o Cristo Rendentor, estamos de braços abertos para quem vier de fora. Mas muitos ficam em silêncio diante do anúncio de políticas que nos fechem para quem vem em busca de uma vida melhor ou apoiam o crescente discurso xenófobo, alimentado pela extrema direita brasileira e global. Isso vai ampliando o fosso entre a fantasia sobre quem somos e a dura realidade.

Pois o reflexo de um povo pode ser visto na forma como trata seus migrantes pobres e refugiados.

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.