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Leonardo Sakamoto

Ao contrário do governo, maioria do país não defende Estado mínimo

Leonardo Sakamoto

06/01/2019 13h36

Foto: Marcello Casal Jr./Agência Brasil

A maioria dos brasileiros é contra privatizar o maior número de possível de estatais (60%) e reduzir leis trabalhistas (57%), de acordo com pesquisa Datafolha. Outra informação da mesma coleta de dados também mostra que 61% defende que a posse de armas deve ser proibida por representar ameaça à vida de outras pessoas.

Ou seja, desejam um Estado não apenas regulador, mas também dono de empresas; que fiscalize e corrija o mercado de trabalho; que imponha limites ao armamento da população e, portanto, à capacidade de resposta individual à violência frente à estatal. Considerando que a mesma pesquisa também mostra que metade da população defende que é problema do governo o fato de mulheres ganharem menos que homens pela mesma função, definitivamente não é Estado mínimo o que eles estão pedindo.

Pode parecer paradoxal que um país que alçou Jair Bolsonaro à Presidência da República defenda posições opostas daquelas que ele fincou como bandeiras de sua administração. Mas a população votou na opção que se vendeu como antissistêmica diante do desgaste do sistema e de seus representantes em dar respostas efetivas para o desemprego, a violência e a corrupção – o que pode ser verificado pelas diversas pesquisas que apontam o desejo de mudança e a rejeição de partidos que antes governavam como principais razões do voto em Bolsonaro. Alguns milhões votaram por questões de comportamento e costumes, mas não são a maioria do país.

Não significa, portanto, que todos seus eleitores e a sociedade endossem necessariamente o pacote de propostas de redução do Estado, ao contrário do que muitos (inclusive o próprio governo) querem fazer crer.

Há quem defenda que o Estado deveria ser menos responsável por educação, saúde, segurança, transporte porque não seria um bom gestor. Ou seja, ao invés de cobrar para manter e ampliar escolas públicas e o SUS, deveria reduzir impostos e transferir recursos às famílias mais pobres para que pagassem mensalidade de uma escola particular ou comprassem um plano de saúde. Ao mesmo tempo, o Estado não deveria ser sócio de empresas, muitos menos administrá-las, mas vender seu comando à iniciativa privada e atuar apenas na regulação de setores mais estratégicos, atuando para melhorar a infraestrutura e garantir segurança pública. E, principalmente, deixar que empregados e patrões se entendam quanto a contratos de trabalho.

Outros defendem que o poder público deve atuar redistribuindo riqueza e, através de impostos cobrados de forma mais pesada dos mais ricos do que dos pobres, custear um Estado que cuide do bem estar da parte de sua população – que não poderia adquirir serviços públicos de qualidade, como cursos de nível superior ou cirurgias complexas, de outra forma. E que os dividendos pagos por estatais sejam usados no desenvolvimento social e elas próprias sirvam para regular preços e fomentar o crescimento em locais ou setores que não atraem a iniciativa privada. E, claro, leis e normas regulem o mercado de trabalho, sendo uma retaguarda para a livre negociação.

Mas a população parece ainda perseguir a promessa da repactuação democrática da Constituição Federal de 1988, com um país que firmou, em seu artigo 3o, como objetivos da República a promoção dos direitos sociais ao lado do desenvolvimento econômico. E não um Estado mínimo, mesmo com todos as dificuldades e problemas para a sua implementação.

A efetivação desses direitos só foi possível porque o Estado investiu de forma crescente na redução da pobreza – da aposentadoria especial rural, passando pelo Sistema Único de Saúde até o Bolsa Família. Quando olhamos para trás, vemos que muito foi feito nos últimos 30 anos, apesar da percepção óbvia de que há muito ainda a ser feito.

Diante dos recursos escassos pelo momento de crise, a discussão é como proteger a dignidade humana e, ao mesmo tempo, não inviabilizar financeiramente o país. Se estivéssemos crescendo economicamente, a resposta a isso seria fácil – como foi em anos passados. Mas, dentro do buraco, as opções aparecem em número reduzido.

O Estado precisa ser mais eficaz, claro. E isso passa não apenas por melhorar os instrumentos de avaliação, mas também por reformar a administração pública e prepará-la para um novo século. O Estado não deve ser inchado, mas contar com o tamanho certo para fazer frente às necessidades da população. Privatizar é um instrumento que pode ser útil ao processo, desde que não seja feita apenas para vender patrimônio público na baixa dos preços aos amigos e aliados.

A sociedade que sentiu o gosto dos direitos sociais não vai aceitar retrocessos. Garantir qualidade dos serviços públicos, como educação, saúde e transporte estava entre os motivos que levaram milhões às ruas em junho de 2013. Mesmo entre as manifestações pelo impeachment, de teor mais conservador, isso também era opinião corrente, furando a polarização entre "coxinhas" e "mortadelas". Levantamento conduzido pelos pesquisadores Esther Solano, Lucia Nader e Pablo Ortellado junto aos manifestantes pró-impeachment de Dilma Rousseff, em 2015, mostrou que além da pauta anticorrupção, a esmagadora maioria defendia o fortalecimento dos serviços públicos universais. Entre os manifestantes, 97% concordava total ou parcialmente que os serviços públicos de saúde deviam ser universais e 96% que deviam ser gratuitos. Já 98% concordava total ou parcialmente com a universalidade da educação pública e 97% com a sua gratuidade.

O Estado não é feito apenas de um naco das elites do Executivo, Legislativo e Judiciário que recebe salário acima do teto constitucional, penduricalhos e gordas aposentadorias. Tampouco é composto de um grupo de diretores de estatais e de autarquias que se locupletam com recursos públicos. É também, e principalmente, mantido por servidores dos três níveis, que ganham pouco e se ferram muito, como professores, agentes de saúde, policiais, soldados.

Cada um de nós têm uma posição sobre como o Estado deveria agir no Brasil frente a esses recursos limitados. Essas viões precisam ser confrontadas, de forma tranquila no espaço público e no Congresso Nacional, para que voltemos a construir um projeto de país coletivo – que é o oposto a enfiar goela abaixo a opinião de alguns.

O problema é que tem sido bastante difícil travar um debate honesto e racional nesses ambientes. Um debate em que ninguém te xingue ou chame de "comunista" quando não concorde, que não queira "ganhar" no grito, que apresente argumentos e dados comprovados e não obscuros e refutados pela comunidade científica. No Congresso, a situação é ainda pior. Os debates em comissões são um show de horrores demonstrando o baixo preparo de nossos representantes. 

Há muita coisa entre um Estado mínimo ultraliberal e uma economia estatizada socialista. A resultante depende da correlação de forças na sociedade. Ao que tudo indica, a maioria dos cidadãos continua querendo de seus representantes, para além da premissa básica de não roubar, que trabalhem por um Estado de bem-estar social. 

Ou seja, a maioria dos brasileiros não é reflexo de seu governo. Mas, se quiserem, podem garantir que seu governo seja reflexo deles. 

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.