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Leonardo Sakamoto

Chacina de Unaí completa 15 anos sem que mandantes estejam na cadeia

Leonardo Sakamoto

28/01/2019 17h44

Foto: José Cruz/Agência Brasil

Três auditores fiscais do trabalho e um motorista foram assassinados enquanto realizavam uma fiscalização rural de rotina na região de Unaí, Noroeste de Minas Gerais, há exatos 15 anos. Até hoje, a história segue sem um desfecho. Mostrando que somos muito bons em chacinas, mas ainda engatinhamos em garantir que a lei valha para todos.

O motorista Aílton Pereira de Oliveira, mesmo baleado, conseguiu fugir do local com o carro e chegar à estrada principal, onde foi socorrido. Levado até o Hospital de Base de Brasília, Oliveira não resistiu e faleceu. Antes de morrer, descreveu uma emboscada: um automóvel teria parado o carro da equipe e homens fortemente armados teriam descido e fuzilado os fiscais. Erastótenes de Almeida Gonçalves, Nelson José da Silva e João Batista Soares Lages morreram na hora. O caso ganhou repercussão na mídia nacional e internacional.

O inquérito entregue à Justiça pela Polícia Federal, seis meses depois, afirmou que a motivação do crime foi o incômodo provocado por insistentes multas impostas pelos auditores. Os irmãos Antério e Norberto Mânica, grandes produtores de feijão, foram apontados como mandantes. Nelson José da Silva seria o alvo principal, naquele 28 de janeiro de 2004, por já ter aplicado cerca de R$ 2 milhões em infrações à fazenda dos Mânica devido a descumprimento de leis trabalhistas.

Também foram envolvidos os pistoleiros Erinaldo de Vasconcelos Silva (o Júnior), Rogério Alan Rocha Rios e William Gomes de Miranda; o contratante dos matadores, Francisco Élder Pinheiro (conhecido como "Chico Pinheiro") e os intermediários Humberto Ribeiro dos Santos, Hugo Alves Pimenta e José Alberto de Castro.

Antério Mânica havia sido condenado, no dia 5 de novembro de 2015, a 100 anos de prisão por ser o mandante dos quatro funcionários públicos. Seu irmão, Norberto, condenado a 98 anos, no dia 30 de outubro daquele ano, pelo crime ocorrido em 2004. Em agosto de 2013, três pistoleiros contratados para a matança foram julgados e considerados culpados. Depois, disso foram condenados os intermediários – exceto, claro, o que morreu antes de ir a julgamento.

O último lance desse processo, que já contou com prisões e solturas, foi a decisão tomada, em 19 de novembro do ano passado, pela Quarta Turma do Tribunal Regional Federal da 1a Região que anulou o julgamento de Antério Mânica. O relator do caso, desembargador Cândido Ribeiro, manteve a condenação de 100 anos de prisão, mas foi vencido pelos seus colegas Néviton Guedes e Olindo Menezes. As razões apontadas foram faltas de provas e falhas no julgamento. Ele havia sido condenado por crime de quádruplo homicídio, triplamente qualificado por motivo torpe, mediante pagamento de recompensa em dinheiro e sem possibilidade de defesa das vítimas. Não há data para um novo Tribunal do Júri.

Os desembargadores também reduziram as penas dos outros envolvidos após revisarem os crimes aos quais eles foram acusados. Norberto passou de 98 para 65 anos, sete meses e 15 dias. O empresário José Alberto de Castro foi de 96 anos, dez meses e 15 dias para 58 anos, dez meses e 15 dias. Hugo Pimenta passou de 47 anos, três meses e 27 dias para 31 anos e seis meses. Os quatro estão soltos.

De acordo com Carlos Silva, presidente do Sindicato Nacional dos Auditores Fiscais do Trabalho (Sinait), neste momento, apesar do resultado conhecido, ainda não há acórdão publicado. E, sem ele, o Ministério Público Federal não pode recorrer da decisão sobre Antério ou mesmo pedir a prisão dos outros três.

"Completos 15 anos da Chacina de Unaí mais uma vez fomos à porta do Tribunal Regional Federal com familiares das vítimas, auditores fiscais do trabalho e outros que lutam conosco contra a impunidade dessa tragédia para mostrar nossa indignação e sofrimento por não termos visto justiça efetiva", explica Silva. "Rapidamente, desvendou-se o crime, descobriu-se os responsáveis, instruiu-se o processo, ainda em 2004. Mas devido a manobras processuais procrastinatórias para livrar a pele dos culpados, eles estão soltos."

Norberto, em uma reviravolta no caso no ano passado, registrou em cartório um documento confessando a encomenda da morte de "apenas" um auditor fiscal do trabalho. Os executores teriam matado os outros três que estavam na operação. Quis isentar, com essa declaração, seu irmão do crime e pleitear a redução de pena, justificando-se que teria ordenado a morte de uma e não quatro pessoas.

"A nós isso soa algo como alguém que estava, de forma calculista e fria, deixando uma cartada processual para o final. Ela não foi submetida ao contraditório e fundamentou a decisão no processo de forma absurda. Isso nos deixou perplexos porque a nós pareceu uma tentativa de enganar o juízo 15 anos depois. O pior é que o réu confesso foi beneficiado com redução de pena", reclama o presidente do Sinait. "O que a sociedade vai ler de um julgamento nesta natureza, com um processo farto em provas, com denúncia robusta e com tribunal de júri condenado todos e, depois, a 4a turma do TRF decidindo isso? Inclusive, ele teve redução de pena mesmo tendo confessado que foi o único mandante, isso é um presente, é a casa das injustiças."

Dia Nacional de Combate ao Trabalho Escravo

A história desse caso se confunde com a trajetória recente do combate à escravidão contemporânea no país, apesar dos quatro funcionários do então Ministério do Trabalho e Emprego não estarem fiscalizando esse tipo de exploração no momento de sua execução.

Tanto que o 28 de janeiro tornou-se, desde 2009, o Dia Nacional de Combate ao Trabalho Escravo. Um seminário sobre as perspectivas do combate a esse crime foi realizado, nesta segunda, na Procuradoria Regional da República, em São Paulo, contando com a presença da procuradora-geral da República, Raquel Dodge, do procurador-geral do Trabalho, Ronaldo Fleury, do diretor da Organização Internacional do Trabalho (OIT) no Brasil, Martin Hahn, entre outros envolvidos no combate a esse crime. Os nomes dos quatro funcionários públicos assassinados, há 15 anos, em Unaí, foram lembrados pelos presentes.

Em 2004, a votação em primeiro turno, na Câmara dos Deputados, da Proposta de Emenda Constitucional que previa o confisco de propriedades flagradas com escravos e sua destinação à reforma agrária ou a programas de habitação urbanos, ocorreu sob forte comoção pública gerada pela execução. Isso pressionou a decisão dos deputados, que aprovaram o texto. Mas quando o sangue dos quatro esfriou, muitos ruralistas sentiram-se confortáveis para protelar a aprovação da PEC, cujo trâmite até a segunda aprovação na Câmara levou oito anos. Em 2014, a Emenda Constitucional 81 foi aprovada no Senado Federal e promulgada pelo Congresso Nacional, mas – desde então – aguarda regulamentação. O presidente eleito Jair Bolsonaro incluiu, em seu programa de governo, uma proposta para revogar essa lei de combate à escravidão.

Mesmo acusado pela chacina, Antério foi eleito prefeito de Unaí, em 2004, pelo PSDB, com 72,37% dos votos válidos. E reeleito em 2008. Em novembro daquele ano, chegou a ser um dos condecorados com a Medalha da Ordem do Mérito Legislativo, em cerimônia promovida pela Assembleia Legislativa de Minas Gerais, realizada no Palácio das Artes e "aplaudida por mais de mil convidados", como explicou o site da própria instituição. O prêmio, que foi considerado por muitos como um desagravo, gerou indignação e mal-estar em parte da sociedade civil e dos deputados mineiros.

Após 15 anos, a impressão que fica neste o caso da Chacina de Unaí é de que a velocidade de funcionamento da Justiça sempre depende de quem é o réu. O ritmo será ditado pelo tamanho de seu poder político e econômico: rápido, se ele quiser que seja rápido, ou lento, se quiser que seja lento, por mais boa vontade e dedicação tenham alguns procuradores e magistrados. Os desdobramentos da Chacina de Unaí mostram um gosto de Justiça agridoce até aqui, sem que os mandantes, pelo menos o confesso, estejam presos. Um sabor, como sabemos, bem brasileiro.

A importância da conclusão dos julgamentos de Unaí não é apenas a garantia de que os envolvidos naquele crime sejam devidamente punidos. Ele é uma trincheira cavada para mostrar que o Estado brasileiro não pode permitir que ricos e poderosos passem por cima tanto dos mais vulneráveis quanto daqueles que tentam garantir a eles um mínimo de dignidade.

Ainda mais em um momento em que o próprio presidente da República e membros de seu governo vêm à público reclamar da "indústria das multas" da fiscalização trabalhista e ambiental e do "ativismo" de fiscais. Mas não comentam a situação muitas vezes deplorável em que o trabalhador é encontrado ou da dilapidação do meio ambiente e da qualidade de vida coletiva, razão para a multa existir.

Quantas histórias como as de Eldorado dos Carajás, Corumbiara, Vigário Geral, Candelária, Carandiru, Pau D'Arco e Unaí estão esperando para acontecer se ocorrer uma redução na já insuficiente capacidade de fiscalização do poder público? Quantas Marianas e Brumadinhos aguardam, em silêncio, sua vez de acabar com sonhos e por um ponto final em biografias? Quantos fiscais ambientais ou do trabalho, que incomodam com suas multas, como Nelson incomodava a família Mânica, existem por aí esperando para morrer?

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.