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Leonardo Sakamoto

Pronto, Flávio. Agora, vá ao MP falar de depósitos, milicianos e Queiroz

Leonardo Sakamoto

01/02/2019 13h12

Foto: Wilson Dias/Agência Brasil

Conforme havia sinalizado, o ministro Marco Aurélio Mello negou foro privilegiado ao senador Flávio Bolsonaro, manteve as provas colhidas até agora e autorizou o Ministério Público do Rio de Janeiro a continuar investigando as "movimentações atípicas" de seu ex-assessor, Fabrício Queiroz. E, portanto, as do próprio Flávio, que está sendo empossado como senador, nesta sexta (1) – mesma data da decisão do ministro do Supremo Tribunal Federal. Poderá, assim, ser investigado no Rio por fatos ocorridos enquanto era ainda deputado estadual.

O senador deveria ter juntado à sua equipe de defesa a ministra Damares Alves, da pasta da Mulher, Família e Direitos Humanos, que já se apresentou como advogada "mestre em direito constitucional e direito da família". O título não foi concedido por homens ou mulheres de instituições acadêmicas, mas por Deus, como mostra apuração de Anna Virginia Balloussier, da Folha de S. Paulo. Damares se justifica citando o livro de Efésios 4:11 -"e Ele designou alguns para apóstolos, outros para profetas, outros para evangelistas e outros para pastores e mestres".

Queiroz segue devendo à sociedade as chamadas "explicações plausíveis" que Flávio diz ter ouvido dele por conta das tais movimentações. Agora, o caso cresceu tanto que o próprio senador passou a dever "explicações plausíveis" sobre suas transações. Nesse sentido, Damares pode ser a pessoa certa para uma intermediação com o divino. Porque será necessário toda ajuda que estiver cadastrada na universidade do Senhor para manter a imagem do senador intacta e evitar contaminação à de seu pai.  

"Conhecereis a verdade e a verdade vos libertará." Jair Bolsonaro repete, insistentemente, desde a campanha eleitoral, essa passagem bíblica. A sociedade concorda com João 8:32 e gostaria de ouvir a verdade de Flávio e Queiroz. Ouvir, ressalto – porque o ex-assessor deseja enviar tudo por escrito ao Ministério Público.

Para garantir a inexistência de "ruídos" na comunicação, sugiro que se Queiroz fizer isso, não use os serviços da assessoria do ministério da Educação. Afinal, o objetivo é entender como ele acabou sendo o elo de ligação entre milícias matadoras de gente e Flávio Bolsonaro e como ele, que "faz dinheiro" com rolo com carros, pode movimentar tanto e morar em uma comunidade pobre.

Após o jornalista de O Globo, Ancelmo Gois, noticiar a censura de vídeos que abordavam autores de esquerda ou com conteúdo crítico à ditadura em um canal do MEC voltado à população surda, o ministério soltou uma inacreditável nota dizendo que o ministro Ricardo Vélez se recusa a "adotar métodos de manipulação da informação, desaparecimento de pessoas e de objetos que eram próprios de organizações como a KGB". E que o jornalista "foi treinado em marxismo e leninismo" pelo Partido Comunista Soviético. Como a nota gerou espanto, na forma e no conteúdo, não seria um bom modelo para Queiroz.

Em 6 de dezembro, Fábio Serapião, do jornal O Estado de S. Paulo, revelou "movimentações atípicas" de R$ 1,2 milhão detectadas através do Coaf (Conselho de Controle de Atividades Financeiras) nas contas de Queiroz, incluindo um depósito de R$ 24 mil para a hoje primeira-dama Michele Bolsonaro. O ex-assessor e motorista de Flávio Bolsonaro faltou às convocações do MP-RJ para prestar esclarecimentos, alegando problemas de saúde. Foi operado no hospital Albert Einstein, no início deste ano, um dos mais caros do país, para a retirada de um tumor no intestino. Repetiu que dará esclarecimentos, quando a saúde permitir.

Flávio também não atendeu ao convite dos promotores para falar sobre o caso. Solicitou ao Supremo Tribunal Federal a suspensão da investigação criminal envolvendo Queiroz e a anulação das provas. O senador argumentou que passou a ter foro privilegiado com a diplomação (mesmo que ele só valha apenas para assuntos ocorrido durante o mandato) e quis que o STF apontasse a quem deve "prestar os devidos esclarecimentos". O ministro Luiz Fux, que estava no plantão, atendeu ao seu pedido, que foi analisado após o fim do recesso do Judiciário, neste 1o de fevereiro – mesma data em que toma posse como senador. Com a polêmica instalada, vieram a público depósitos fracionados em sua conta que Flávio atribui à compra e venda de imóveis e mais movimentações de Queiroz, agora totalizando R$ 7 milhões.

Jair Bolsonaro afirma que o valor depositado na conta de sua esposa é a devolução de parte de um empréstimo que fez a Queiroz, que totaliza R$ 40 mil. A oposição ao governo acusa Fabrício Queiroz de ser um laranja usado pela família Bolsonaro para repassar parte dos salários recebidos por funcionários de seus mandatos. Há coincidências entre datas de pagamentos pela Assembleia Legislativa do Rio, depósitos na conta de Queiroz feitos por outros funcionários do gabinete de Flávio e saques em dinheiro pelo ex-assessor.

Queiroz e Flávio têm preferido dar entrevistas a TVs ao invés de falar com o MP. Daí, quando a história já parecia suficientemente bizarra, a imprensa revelou que a esposa e a mãe de um miliciano poderoso trabalhavam no gabinete do então deputado. E que Flávio homenageou formalmente, via Assembleia Legislativa, esse miliciano, que teve prisão decretada, e um outro, que já foi preso.

"Não é justo atingir um garoto, fazer o que estão fazendo com ele, para tentar me atingir", disse o presidente Jair Bolsonaro, no dia 24 de janeiro, em entrevista à TV Record sobre o caso.

Injusto é o governo Bolsonaro se comunicar com a sociedade como se estivesse em guerra eleitoral. Isso aqui não é campanha, é a vida real, o dia a dia. Pessoas próximas ao centro do poder político do país deveriam prestar contas de seus atos sem necessidade de ordens judiciais. Ministros não deveriam mentir, atacar ou ameaçar jornalistas, tampouco usar de fantasia para justificar censura. O Estado teria que proteger e não tentar reduzir o alcance da Lei de Acesso à Informação. Atores públicos, que construíram fama afirmando-se guardiões da lei e que assumiram cargos no governo precisariam ter pudor e agir contra a tentativa do governo e seus aliados de acobertar informações de interesse público.

Não é justo, portanto, que sejamos tratados como idiotas, mas é isso o que acontece.

Agora, com as "dúvidas" de Flávio dirimidas por Marco Aurélio, esperemos que o senador preste todas as informações ao Ministério Público o quanto antes. A menos que, bem assessorado, evoque alguma regra religiosa presente nos livros de Números, Levítico e Deuteronômio a fim de evitar falar sobre depósitos, milícias e Queiroz.

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.