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Leonardo Sakamoto

Reforma da Previdência incluirá proposta que torna CLT "opcional" a jovens

Leonardo Sakamoto

06/02/2019 19h54

Jovem de 17 anos, libertado do trabalho escravo em fazenda no Pará, mostra mão machucada pela aplicação de agrotóxico e água que era oferecida para ele beber. Foto: Leonardo Sakamoto

O ministro da Economia Paulo Guedes afirmou que o texto da Reforma da Previdência deve incluir a proposta de criação de um regime alternativo aos jovens que entrarem no mercado de trabalho. Nele, o contrato individual prevalece sobre a CLT, garantindo os direitos constitucionais. Na prática, os ingressantes poderão ser contratados sem as mesmas proteções à sua saúde e segurança e sem os mesmos benefícios previstos no acordo coletivo de sua categoria.

"O jovem poderá escolher. Na porta da esquerda, há a Carta del Lavoro [código trabalhista italiano aprovado no governo de Mussolini, uma referência clara à CLT], Justiça do Trabalho, sindicatos, mas quase não tem emprego. É o sistema atual. Na porta da direita, não tem nada disso", afirmou Guedes em encontro realizado pelo portal Poder 360.

O número de empregados no setor privado com carteira assinada, excluindo trabalhadoras empregadas domésticas, é de 33 milhões, de acordo com a última Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios – Contínua do IBGE, referente ao trimestre que terminou em dezembro. O número de empregados sem carteira assinada é de 11,5 milhões. Quem trabalha por conta própria, 23,8 milhões;  empregadores, 4,5 milhões; empregados no setor público (incluindo estatutários e militares), 11,6 milhõestrabalhadoras domésticas, 6,3 milhões. O número de desocupados é de 12,2 milhões.

A declaração vai ao encontro de proposta que faz parte do programa de governo do então candidato Jair Bolsonaro: "Criaremos uma nova carteira de trabalho verde e amarela, voluntária, para novos trabalhadores. Assim, todo jovem que ingresse no mercado de trabalho poderá escolher entre um vínculo empregatício baseado na carteira de trabalho tradicional (azul) – mantendo o ordenamento jurídico atual –, ou uma carteira de trabalho verde e amarela (onde o contrato individual prevalece sobre a CLT, mantendo todos os direitos constitucionais)".

O que, por sua vez, reverbera o que Bolsonaro tem repetido a empresários desde julho do ano passado: "o trabalhador vai ter que decidir se quer menos direitos e emprego, ou todos os direitos e desemprego". A medida é vista como um aprofundamento da Reforma Trabalhista, proposta pelo governo Michel Temer e aprovada pelo Congresso Nacional em 2017.

Vale lembrar que pesquisa Datafolha, divulgada em janeiro, aponta que 57% dos brasileiros discordam de que "é preciso ter menos leis trabalhistas", enquanto 39% concordam e o restante não soube opinar.

É consenso que a livre elaboração de um contrato, com direitos e deveres de ambas as partes postos na mesa de forma igual e equilibrada, é a situação ideal. Na prática, contudo, um contrato individual pode ser firmado tanto em benefício do trabalhador quanto em seu prejuízo – neste último caso, envolvendo, principalmente, indivíduos economicamente vulneráveis. Nesse sentido, sem as balizas da lei e o apoio de um sindicato honesto, a livre negociação de um contrato entre um trabalhador e um empregador é possível quando ambos contam com a mesma força no momento de assinatura de um contrato – situação que, na verdade, é assimétrica a favor do empregador na maioria das vezes.

"As pessoas vão ver dois sistemas funcionando. Um com muitos direitos e poucos empregos. E outro com menos direitos e muitos empregos. Elas vão olhar isso por dois, três anos e 'babar' um pouco", declarou o ministro da Economia no mesmo encontro.

O que o ministro não diz é que, em sua ação, reside o poder de cumprir a própria teoria. Pois, a partir do momento, em que o governo permite um contrato que cria um empregado mais caro (e com melhor qualidade de vida) e outro mais barato (e com pior qualidade de vida), verá a migração de postos de trabalho usando o novo instrumento, principalmente em funções pouco especializadas.

O que gera emprego, contudo, é crescimento econômico. Força de trabalho é necessária caso o país volte a crescer, independentemente dos benefícios pagos ou da forma de contrato. Tanto que muitos prometeram que, após a Reforma Trabalhista, o desemprego cairia fortemente – o que não aconteceu. O mercado de trabalho melhora, mas muito lentamente.

A Reforma Trabalhista permitiu que a negociação entre patrões e empregados ficasse acima do que diz a CLT. Ela, porém, limita os temas em que isso pode acontecer e afirma que a decisão deve ser tomada de forma coletiva, através de sindicatos. Pois, no desespero, diante da dificuldade de conseguir um trabalho, um indivíduo pode ser pressionado, objetivamente ou pelas circunstâncias, a ceder e abrir mão de proteções conquistadas com muita negociação ao longo de décadas.

A proposta de Guedes significa abrir uma porta para a revogação da Consolidação das Leis do Trabalho a um grupo específico dos mais vulneráveis, os jovens mais pobres. Sem contar que essa revogação geraria uma enorme insegurança jurídica, criando outros problemas – parte dos direitos que estão presentes na Constituição demandam leis específicas presentes na CLT para fazer sentido – normas infraconstitucionais que são reflexos dos direitos previstos na Carta Magna.\

Justiça do Trabalho vs Justiça comum

Para o ministro da Economia, o Judiciário trabalhista não alcançaria os que optarem por essa nova forma de contratação. "Seu patrão fez algo de ruim com você? Vai na Justiça comum contra ele", afirmou ao Poder 360.

O juiz Marcus Barberino, vice-presidente da Escola Associativa da Magistratura do Trabalho da 15a Região, discorda e diz que o governo vai acabar comprando uma dor de cabeça para si. "Os conflitos entre capital e trabalho estão sob responsabilidade da Justiça do Trabalho, de acordo com o artigo 114 da Constituição Federal." Isso pode ser mudado, mas seria uma malabarismo, segundo ele, porque o sistema é feito para ter um mínimo de racionalidade. Evitando que o mesmo tipo de delito trabalhista seja analisado, ao mesmo tempo, pela Justiça do Trabalho e pela Justiça comum.

Para Barberino, os trabalhadores que estão sob as mesmas condições de serviço, têm direitos iguais, independentemente do contrato que assinam. E haveria uma vedação ao retrocesso: "do ponto de vista jurídico, nós temos mecanismos de proteção civilizatória. Essa legislação vai acabar levando a mais litigiosidade, que se arrastará até que o Supremo Tribunal Federal resolva a questão".

Um ministro do Tribunal Superior do Trabalho, que preferiu não se identificar, comentou que o governo federal terá dificuldade de levar a proposta da "carteira verde e amarela" adiante. Tanto pela questão de isonomia, com um grupo tendo a proteção à sua saúde e segurança garantida pela lei e, outro, não, quanto pelos problemas de permitir que se trate de um mesmo problema trabalhista em dois ramos diferentes do Judiciário. 

Para além de direitos como férias e 13o salário, presentes pela Constituição Federal, há garantias importantes registradas na CLT, como questões sobre o descanso e a jornada de trabalho e regras para demissão de empregados, por exemplo. Ou as partes que tratam de contratos específicos para cada categoria – motoristas, professores, entre outros.  Racionalizar e atualizar o conjunto dessa legislação é importante. Há muita coisa que poderia ter sido feita, nesse sentido, na reforma aprovada em 2017 – que conta com algumas coisas boas para ambas as partes e outras tantas muitos ruins para os trabalhadores. Mudanças que poderiam ser feitos em um diálogo amplo com a sociedade.

Para parte das pessoas, a proposta de campanha de Bolsonaro, que deve ser apresentada por Guedes, significa o fim da tutela do Estado sobre os trabalhadores, dando a eles mais liberdade. Contudo, da forma como está posta, é também a redução do custo dos empregadores obtido através da redução da proteção à saúde e segurança dos trabalhadores. E o reconhecimento de que o atual governo adota o mesmo comportamento do anterior, de usar a crise como justificativa para reduzir a legislação trabalhista.

De qualquer forma, caso a proposta seja aprovada, considerada constitucional pelo STF e empregadores fizerem a esperada pressão por admissões utilizando o novo tipo de contrato, a CLT deixará de regular a maior parte das relações de trabalho formalizadas quando chegar a aposentadoria da parcela da população economicamente ativa que usa a "carteira azul", o que deve ocorrer em algumas décadas. Parece pouco, mas isso mudaria para sempre a sociedade. Para a alegria de uns e o desamparo de muitos.

 

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.