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Leonardo Sakamoto

Além do pequeno produtor, assalariado rural também é ameaçado pela Reforma

Leonardo Sakamoto

22/02/2019 19h28

Trabalhadores rurais resgatados do trabalho escravo aguardam pagamento em fazenda no Pará. Foto: Leonardo Sakamoto

Entre os trabalhadores rurais, não são apenas os da economia familiar (pequenos produtores, seringueiros, coletoras de babaçu, pescadores artesanais, entre outros) que serão impactados negativamente pela Reforma da Previdência de Jair Bolsonaro. Os assalariados rurais, empregados com carteira assinada, sobre os quais não se fala muito, também terão dificuldade em se aposentar.

Todos os trabalhadores de atividades rurais, sejam da economia familiar ou assalariados, podem, hoje, pleitear a aposentadoria cinco anos antes dos demais do regime geral no meio urbano. Como a aposentadoria por idade já acontece aos 65 anos (homens) e (60 mulheres), no campo esse sarrafo desce a 60 e 55, respectivamente. O governo propôs aumentar a idade das mulheres a 60 anos e equiparar à dos homens entre os rurais.

A partir daí, as diferenças começam. Os trabalhadores rurais da economia familiar contam com uma aposentadoria especial: precisam comprovar 15 anos de trabalho no campo para pleitearem um salário mínimo mensal. A lei prevê recolhimento de imposto previdenciário no momento da comercialização de sua produção, o que nem sempre acontece. O mais importante, contudo, é comprovar o trabalho no campo, não a contribuição.

Como expliquei aqui, nesta quinta, a Reforma da Previdência dificulta as exigências para que esse grupo social se aposente. O tempo de trabalho vai a 20 anos. E se o valor de imposto arrecadado no momento da venda dos produtos não atingir um patamar mínimo, o núcleo familiar terá que completar uma cota até chegar a uma contribuição anual de R$ 600,00. O equivalente a R$ 50,00 por mês.

Considerando que a atividade rural está exposta a uma série de fatores como sol, chuva, clima, ataque de pragas, variação do preço do produto (que, às vezes, não paga nem o custo da produção), não raro, ao final de um ano, a renda líquida é insuficiente até para a sobrevivência, sendo necessário suporte de programas como o Bolsa Família. Ou seja, corre o risco desse trabalhador não poder se aposentar. Ou, bizarramente, usar o Bolsa Família para pagar o carnê anual da aposentadoria.

Contudo, os assalariados rurais também não terão vida fácil. A lei 11.718/2008 já havia alterado sua forma de contribuição à Previdência, fazendo com que, após um processo de transição, seja igual à dos trabalhadores do regime geral. Ou seja, após 2020, todos os empregados rurais devem contribuir por 15 anos (180 contribuições mensais) para se aposentarem por idade – o mesmo que um empregado urbano.

A reforma passa a exigir desse grupo também 20 anos de contribuição, ou seja, 240 meses. Se já era difícil completar os 180 meses antes, vai se tornar quase impossível para um grande naco desse pessoal se aposentar.

Primeiro, pela informalidade. Dados do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese) sobre números da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio (PNAD) Contínua do IBGE, de 2016, mostram que cerca de 56% dos 3,4 milhões de empregados rurais trabalhavam sem carteira assinada.

Em outras palavras: 15 anos de contribuição podem ser alcançados com 30 de trabalho, caso ele, na média, esteja formalmente contratado durante metade do ano. Ou 40 anos, se a proposta de Bolsonaro for aprovada.

Por exemplo, o corte da cana começa, geralmente, em abril e se encerra entre o final de novembro e início de dezembro, em São Paulo, sempre obedecendo o ciclo das chuvas – quando as empresas vão para a manutenção industrial. Na região Sul, há colheitas de batata, cebola, maçã, que usam mão de obra por tempo curto – da mesma forma que limpeza de pasto e produção de carvão na Amazônia. Quando terminam um serviço e não conseguem outro ou se o serviço não assina sua carteira, trabalham sem contar tempo para a aposentadoria.

Além disso, a natureza do trabalho leva o corpo à exaustão muito antes do restante da sociedade. "A reforma não fala em 'perda da capacidade laborativa', que no campo é muito mais precoce que na cidade", explica Carlos Eduardo Chaves Silva, assessor jurídico da Federação dos Trabalhadores Assalariados Rurais do Rio Grande do Sul.

Há uma intersecção entre os dois grupos. Parte dos trabalhadores rurais da agricultura familiar acaba trabalhando para terceiros como empregados – para plantio, colheita, serviços gerais – em períodos de entressafra ou de seca, em sua terra, ou de defeso, na pesca. A lei garante que possam permanecer assalariados até 120 dias por ano sem que percam a condição de segurados especiais da Previdência. Mas a quantidade de trabalhadores que são empregados rurais e não possuem propriedades, morando em cidades, é grande.

O destino dos dois grupos pode acabar sendo o Benefício de Prestação Continuada (BPC), a assistência aos idosos em condição de miserabilidade. Não admira, portanto, que o governo esteja propondo estender de 65 para 70 anos a idade mínima para pleitear o recebimento de um salário mínimo mensal, entregando, em troca, uma compensação de R$ 400,00 a partir dos 60 anos. Sabe que haverá sobrecarga de grupos que não mais conseguirão se aposentar, como os rurais.

O governo afirma que o aumento da idade para que o beneficiado possa receber um salário mínimo tem por objetivo estimular a contribuição à Previdência, que conta com uma idade mínima menor (65).

A aposentadoria por idade já acontece aos 65 anos e não parece ser a tendência da maioria da população fugir de empregos e depreciar sua qualidade de vida para pleitear o benefício. Vale lembrar que o BPC é destinado a quem tem renda familiar mensal per capita de menos de R$ 249,50 (pouco mais de dois dólares/dia), o que significa uma vida com graves limitações. Além disso, considerando o alto grau de informalidade no campo, não significa que essas pessoas não trabalham, mas que seus empregadores não recolhem as contribuições para possibilitar a elas a aposentadoria e que o Estado não foi capaz de garantir a formalização do contrato – apesar dos esforços dos auditores fiscais do trabalho.

Governadores e parlamentares do Nordeste estão fazendo contas. E considerando que a economia de locais eminentemente pobres e rurais dependem dessas aposentadorias, dificilmente apoiarão mudanças tão drásticas junto a uma das camadas mais vulneráveis da população. A menos que queiram se aposentar mais cedo na política.

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.