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Leonardo Sakamoto

Do caos calmo à decepção: como foi o "Dia D" na fronteira com a Venezuela

Leonardo Sakamoto

24/02/2019 17h38

Venezuelanos em volta da primeira camionete com mantimentos e remédios na fronteira entre Venezuela e Brasil. Fotos: Maurício Monteiro Filho

Por Maurício Monteiro Filho*, especial para o blog

Pacaraima, Roraima – A fronteiriça Pacaraima, em Roraima, amanheceu num estado de caos calmo. Às 5h30, o sol nascia, alguns venezuelanos que dormem na rodoviária despertavam, outros caminhavam pela cidade, chegando, partindo, buscando. O dia era 23 de fevereiro, sábado, data prevista do desenlace de uma tensão crescente desde uma semana antes, quando Juan Guaidó, o autoproclamado presidente da Venezuela, declarara que os venezuelanos iriam às ruas para apoiar a entrada da ajuda humanitária pelas fronteiras com o Brasil, por Pacaraima, e a Colômbia, por Cúcuta.

Com a informação de que um grande carregamento havia chegado à base aérea de Boa Vista, jornalistas, repórteres fotográficos e cinegrafistas de diversos veículos do Brasil e do mundo se alternavam entre a cobertura da fronteira e a expectativa pela chegada do comboio, que traria mantimentos e medicamentos para serem entregues ao país vizinho. A essa altura, os dois caminhões estavam a caminho de Pacaraima.

Cerca de 200 metros a partir da fronteira, do lado venezuelano, era possível ver uma linha de membros da Guardia Nacional Bolivariana fechando a via de acesso ao posto de fronteira venezuelano. Outros soldados se colocavam até os limites dos marcos que indicam a separação entre os dois países apenas para testemunhar grupos de venezuelanos chegando ao Brasil por "la trocha" – como eles chamam os caminhos alternativos para chegar ao lado de cá pelo campo, sem passar pelo posto na rodovia.

Com a fronteira fechada desde o dia anterior, o tráfego por ali estava bem maior que o usual. Até turistas que estavam passeando no Monte Roraima, que está na divisa entre os dois países mas é alcançável mais facilmente pelo outro lado, e foram surpreendidos pelo bloqueio na fronteira, vinham por ali.

Imigrantes já estabelecidos em Pacaraima, levando carrinhos de mão pelas colinas da fronteira, iam em direção aos que chegavam para ajudá-los com as bagagens. Quando atingiam a estrada, já em solo brasileiro, os recém-chegados eram abordados pelos "trocadores", em sua maioria imigrantes, que trocavam os defasados bolívares soberanos por reais, com taxas de câmbio completamente arbitrárias.

Grupos de venezuelanos periodicamente gritavam insultos aos guardas. "Asesinos. Cuanto te están pagando?" O sentimento anti-Maduro era maciço e os soldados representavam o presidente, ali.

Na fronteira, em Pacaraima (RR), primeiro de dois caminhões de alimentos e remédios destinados à Venezuela

Se, exatamente na fronteira, o conflito estava em suspensão, 17 quilômetros ao norte, na cidade de Santa Elena de Uairén, ele estava conflagrado. Moradores da cidade relatavam dificuldade de enxergar pela janela de suas casas, por conta da fumaça que tomava as ruas. Relatos de disparos com balas de borracha e munição letal congestionavam as timelines. Fala-se em 14 mortos e dezenas de feridos até agora. A cidade tem forte presença dos indígenas pemones, que têm enfrentado abertamente as forças de Maduro. Ao menos uma mulher indígena foi morta.

Da fronteira, era possível ver a fumaça atrás dos morros.

Como será de praxe indefinidamente, mensagens e áudios apócrifos circulam pelo WhatsApp de moradores de Santa Elena, dificultando a percepção do que é real e do que é fabricado, de um lado e do outro do conflito.

Por volta das 8h30, foi realizada uma coletiva de imprensa. À mesa, o ministro das Relações Exteriores do Brasil, Ernesto Araújo, o encarregado de negócios da embaixada dos Estados Unidos no Brasil, William Popp, e a embaixadora venezuelana Maria Teresa Belandria, representando o governo autoproclamado de Guaidó.

Havia pouca margem à imaginação para quem considerava polêmica a presença americana na coordenação da ajuda humanitária. Agentes à paisana, uma profusão de pontos eletrônicos em ouvidos estrangeiros, cheiro de serviço secreto no ar. Indícios quase caricatos de um filme que foi visto tantas vezes na América Latina.

Ernesto Araújo se ateve ao português em seu pronunciamento. Enalteceu a ação coordenada do Brasil com os Estados Unidos e o governo autoproclamado de Guaidó na restauração da democracia na Venezuela. Disse que cerca de 200 toneladas de alimentos – 178 vindas dos Estados Unidos e 22 do Brasil – estão disponíveis para os venezuelanos. Desde que sejam retirados por caminhões venezuelanos, dirigidos por venezuelanos, para que o Brasil não se aventure ativamente do outro lado da fronteira.

A ajuda é pauta de controvérsia entre governo e militares – esses últimos, até aqui, agindo como a parte mais ponderada, menos ideológica, no debate. O Exército tem sido fundamental na administração da crise imigratória. A Operação Acolhida, que coordenada pela instituição, recebe os imigrantes em Pacaraima e Boa Vista e supervisiona abrigos e doações. Por seu caráter estritamente humanitário, está lado a lado com agências internacionais e organizações civis. E é preciso que esse caráter se mantenha para não afetar essas relações institucionais, que têm conseguido garantir um mínimo de dignidade aos imigrantes.

Os oficiais à frente da Operação Acolhida têm feito questão de se desvincular de qualquer ação relacionada com o envio da ajuda humanitária para não correr o risco de ultrapassar qualquer limite da não-intervenção.

Durante a coletiva, Araújo anunciou a chegada, dentro de minutos, das primeiras cargas de ajuda humanitária à fronteira.

De fato, algum tempo depois, escoltado por viaturas da Polícia Rodoviária Federal, chegou o primeiro veículo, carregando ajuda humanitária. Viriam dois juntos, mas o segundo teve um pneu furado na estrada e só chegou horas depois.

Foi com um misto de incredulidade e frustração que os venezuelanos, já em grande número, esperando uma "gandola" – em português, um caminhão – viram chegar uma camionete. A carga (de leite, arroz e kits de primeiros socorros), diziam, não seria capaz de abastecer nem uma "bodega", que dirá diminuir a fome do Estado Bolívar, em situação calamitosa de necessidade.

Aqui e ali, ouvia-se as palavras "chiste", "burla" e "broma" – variações para piada ou brincadeira, no português – para definir todo o evento.

Segundo caminhão de "ajuda humanitária" a caminho da fronteira da Venezuela

Depois de uma certa indefinição sobre onde a camionete aguardaria seu destino, a equipe que veio com Belandria fez o veículo ocupar rigorosamente os primeiros metros do território venezuelano. Ainda estava a muitos mais de onde se encontrava o bloqueio da Guardia Nacional, portanto aquém da zona em que se revelaria a reação efetiva das forças leais a Maduro. Mas bastou a Guaidó, que anunciou a entrada do primeiro carregamento da ajuda na Venezuela no Twitter.

Belandria justificou o envio da carga em veículos pequenos, alegando que Maduro ameaçara motoristas e transportadoras que se voluntariassem a realizar o frete.

Por isso, a maior parte da ajuda deve continuar aguardando em Boa Vista por um bom tempo, ainda.

Em cima da camionete, um membro da equipe de Belandria, que se identificava apenas como "um colaborador", dizia: "Agora estamos em território venezuelano. O Brasil não tem mais nada a ver com isso". E conclamava os imigrantes que se amontoavam sobre a carga para que resistissem ali, por quanto tempo fosse necessário, e depois rumassem para a Venezuela, a qualquer custo. Distribuía camisetas da Coalición de Ayuda y Libertad Venezuela.

Bandeirinhas da Venezuela e rostos pintados com as cores do país se multiplicaram rapidamente e a situação se assemelhava a um comício da oposição, apoiada em peso pelos venezuelanos que estavam ali.

Mais tarde, a presença das camionetes foi aumentando a tensão e elas foram retiradas da fronteira, contrariando o discurso da equipe do autodeclarado presidente.

Inflamados pela chegada da ajuda, grupos de venezuelanos se aproximaram do bloqueio, intensificando as provocações aos soldados. A Guardia Nacional os dispersou com bombas de gás lacrimogêneo. Eles revidaram jogando pedras e lançando as bombas de volta. Uma edificação de apoio das forças venezuelanas, que fica próxima a um posto da PDVSA (a petrolífera estatal) foi incendiada.

Como de costume, Maduro mantinha o esforço de ignorar a tensão nas fronteiras – do lado colombiano também havia conflito e um caminhão da ajuda chegou a ser incendiado. No Twitter, irônico, postou um vídeo em que dirigia por uma Caracas "calma, tranquila", como descreveu. Mostra que nem o acirramento da crise diplomática é capaz de lhe produzir empatia com o sofrimento sem precedentes de seu povo.

Ao fim do "Dia D" da avalanche humanitária propagandeada por Guaidó, o saldo foi de mortos, feridos e sem a entrega da camioneta de ajuda aos venezuelanos. Sobretudo, foi a ressurreição de vultos que assombram a soberania latino-americana desde sempre. O único resultado possível de uma midiática, irrefletida e autoproclamada ajuda.

(*) Maurício Monteiro Filho é jornalista e documentarista. Está em Roraima para produzir um documentário sobre os refugiados venezuelanos no Brasil. 

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.