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Leonardo Sakamoto

Ao invés de governar, Bolsonaro bomba vídeo de "golden shower" no Carnaval

Leonardo Sakamoto

06/03/2019 10h14

Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil

Jair Bolsonaro postou em sua conta no Twitter o vídeo de um homem dançando em um ponto de táxi após enfiar o dedo no próprio ânus. Logo depois, aparece outro que urina na cabeça daquele que dançava. "É isto que tem virado muitos blocos de rua no Carnaval brasileiro", escreve ele.

Quando delegou a Economia a Paulo Guedes e a Segurança Pública a Sérgio Moro e colocou militares como fiadores da estabilidade de seu governo, muito se discutiu o que sobraria para o presidente da República.

Uma das maiores apostas era ser Fiscal do Ânus Alheio, tarefa que executava com maestria quando era parlamentar, mas também durante a campanha eleitoral. Talvez inspirado por esotéricos filósofos, que demonstram fixação anal em suas interações nas redes sociais, parece que Bolsonaro resolveu aproveitar o Carnaval para se aprofundar nesse caminho.

Contudo, se resolver fiscalizar Golden Shower (na tradução literal, "chuveiro dourado", que é o ato de urinar no parceiro durante o sexo) no Carnaval de rua, o presidente terá, novamente, uma função bastante limitada. Pois achar que a cena representa o que acontece nos blocos não só em São Paulo como em todo o Brasil é uma desconexão completa e preocupante da realidade.

Não imagino que milhões de famílias que levaram seus filhos à rua para brincar e outros tantos milhões de foliões que foram dançar, rir, beber e se divertir nos blocos concordam com Bolsonaro. Pelo contrário, para eles é uma generalização tão absurda que ganha forma de ação de desinformação em massa. Como o boato de que uma "mamadeira de piroca" estaria sendo distribuída pelo PT nas escolas, que circulou como fato, criando pânico e desespero entre seus eleitores no ano passado.

A generalização é uma afronta pior do que aquela do ministro da Educação Ricardo Vélez Rodríguez. Ele afirmou que o brasileiro, quando viaja, é um "canibal" que "rouba coisas dos hotéis, rouba o assento salva-vidas do avião". Bolsonaro disse que Vélez pediu desculpas a mando dele. Mas, e agora, quem vai mandar Bolsonaro se desculpar?

Se o presidente não entende o que é uma generalização, um exemplo seria afirmar que todo governante de direita com perfil autoritário é pedófilo, como o ex-ditador paraguaio Alfredo Stroessner. Ou que todo militar anticomunista é um carniceiro torturador, como o coronel Brilhante Ustra. Ambos citados como exemplos de homens públicos por Bolsonaro.

"Não me sinto confortável em mostrar, mas temos que expor a verdade para a população ter conhecimento e sempre tomar suas prioridades", escreveu também Bolsonaro na fatídica postagem. Como deve estar autorizado apenas a fiscalizar costumes e comportamentos, a exposição da "verdade" por ele tem mandato limitado. Caso contrário, ele poderia ajudar a "expor a verdade" sobre as relações entre Fabrício Queiroz e o senador Flávio Bolsonaro – incluindo os R$ 24 mil que o ex-assessor depositou na conta de sua esposa, Michele. Mas também a respeito das indiretas distribuídas por Gustavo Bebianno, ao ser escorraçado de seu governo. Ou ainda, explicações sobre as denúncias de cultivo de frondosos laranjais pelo seu partido, o PSL, incluindo os do ministro do Turismo, Marcelo Álvaro Antônio.

O que é mais útil para a moralização do país? Que o presidente garanta que essas questões sejam respondidas, doa a quem doer, ou gastar tempo fiscalizando o ânus alheio no Carnaval e divulgando cenas como aquela pelas redes sociais?

Bolsonaro está com os blocos de Carnaval entalados na garganta por ter sido amplamente criticado. Para quem precisa constantemente transformar moinhos de vento em monstros para poder governar, é um sentimento amargo ter seu nome entoado de forma negativa em ruas e avenidas. Precisa, portanto, desmoralizá-los diante da parcela de seus seguidores, adotando um padrão ad hominem de atacar quem critica e não a crítica em si. Ele sabe que é uma falsa generalização, mas também sabe que a pauta comportamental é o que leva ao delírio parte de seus fãs. A partir daí fomenta o medo de que o país está se dissolvendo e ele, e só ele, é capaz de evitar que isso aconteça como guardião da moral. O efeito colateral é criar uma onda de ódio para cima dos blocos e de certos grupos minoritários, como a população LGBTT.

Qualquer criança tem acesso a vídeos bem mais fortes do que esse na internet quando não estabelecidos os controles parentais de uso. Mas quando o presidente da República divulga esse vídeo a milhões através da conta em rede social que usa para informar a população de suas decisões e medidas, ele manda para o espaço qualquer resquício de decoro que ainda se esperava dele no cargo em que ocupa.

Ao mesmo tempo, mostra o quão hipócrita é a reclamação contra exposições de arte ou performances artísticas que adotam o nu, realizadas em ambientes fechados, e que causam furor entre representantes de seu grupo político. A questão não é peito, bunda, pinto ou cu. É usá-los, como ferramentas na disputa por corações e mentes da população, impondo significados da forma que mais lhe convém.

Parece insanidade, mas Bolsonaro vai seguir investindo em narrativas morais como instrumento de poder, com o objetivo de dar coesão a uma parte de sua base e, com isso, proteger-se. Sabia que seria defendido por ela diante da esperada resposta crítica às suas declarações e assim se fortalecer pela identidade reativa. E enquanto o xixi é trending topic global, os problemas de seu governo são postos em segundo plano.

Poderia ganhar apoio de outra forma, por exemplo através do diálogo político, de grandes discursos à sociedade ou da execução de medidas amplas para combater o desemprego e a violência. Preferiu, enfim, o caminho que conhece melhor.

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.