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Leonardo Sakamoto

'Choveu mais do que o previsto' tornou-se a desculpa furada padrão

Leonardo Sakamoto

11/03/2019 14h14

Desabamento de residência em Ribeirão Pires, Grande São Paulo, deixa quatro mortos na noite de domingo. Foto: João Damásio/O fotográfico/Estadão Conteúdo

Ao menos, 12 pessoas morreram vítimas da incapacidade do poder público de antecipar-se ao impacto das chuvas de verão na Grande São Paulo. Morrer em um deslizamento de terra na mais rica região metropolitana do país, em pleno século 21, já é revoltante. Por afogamento, após uma tempestade, beira o inacreditável.

Foram quatro em Ribeirão Pires (deslizamento), três em São Caetano do Sul (afogamento), um em Embu (deslizamento), um em São Bernardo do Campo (afogamento), dois em Santo André (afogamento) e um na capital paulista (afogamento).

Neste momento, autoridades assumem a justificativa padrão do "choveu mais do que o previsto, então não dava para fazer nada". Uma variação dessa explicação foi adotada pelo prefeito interino de São Paulo, o presidente da Câmara dos Vereadores, Eduardo Tuma – que substitui o prefeito Bruno Covas nesta semana. Pode-se dizer que a chuva foi uma bomba que caiu em seu colo, mas também que agiu conforme o roteiro de muitos dos que comandam e comandaram municípios da Grande São Paulo.

"Não havia qualquer ação preventiva que pudesse corrigir o que aconteceu hoje", disse Tuma. Entende-se que, diante de uma grande chuva, pontos podem alagar e travar vias públicas, considerando a escala da metrópole e o tamanho de seus desafios. Não podemos proibir que tempestades causem impacto, mas existe tecnologia e protocolos para mitigá-lo. Não estamos falando de evitar congestionamentos, mas a morte de 12 pessoas.

Como já disse aqui, chamamos equivocamente de "desastres naturais" as mortes causadas por inundações, deslizamentos, entre outros eventos. Mas não há nada de natural nisso, pois é possível prever e reduzir o sofrimento causado. A retirada da população de um local, com antecedência, e a recolocação em outro, de forma decente e digna, é um exemplo. A melhoria estrutural de uma comunidade para evitar um deslizamento, é outro. Obras de drenagem e de desassoreamento e limpeza das calhas dos rios e córregos, evitando que pessoas sejam arrastadas são bem conhecidas. Sem falar na adoção de sistemas de alertas decentes, emitidos horas ou dias antes. Se esses processos não são implantados é também por irresponsabilidade ou incompetência de gestores.

No Brasil, se choveu mais do que deveria, moradias deslizaram e pessoas foram levadas pelas águas, fica a impressão de que não daria para fazer nada. Mas não é bem assim. Desse ponto de vista, o que é chamado de "desastre natural" deveria ser tratado como descaso para fins de responsabilização judicial. Ou, ao menos, eleitoral. Se a nossa cidadania fosse exercida de fato.

Por fim, o Brasil tem ignorado em seus planejamentos os estudos e relatórios que mostram que as mudanças climáticas já afetaram, de forma definitiva, nosso regime pluviométrico. Mas tem preferido jogar para a população o preço, econômico e social, dessa incompetência ou cara de pau. Quando um governo federal, estadual ou municipal usa o argumento de que estamos em um momento atípico para justificar um iminente cataclisma envolvendo água, apenas evidencia que não leva em conta, em seu planejamento, que o clima está mudando. Pois, se tivesse, a própria justificativa não faria sentido. Temos que parar e analisar o quanto as médias de 20 anos atrás ainda são úteis a fim de entender o que fazer agora e pelos próximos anos. 

Não precisamos de governantes otimistas, que acreditam na possibilidade de chover menos, ou de administradores religiosos, que rezam por uma trégua dos céus, terceirizando a responsabilidade para Deus. E sim de gente realista, que tem o perfil de alguém que espera sempre o pior e age preventivamente, não culpando as forças do universo pelo ocorrido, muitos menos a estatística e a meteorologia. Falhas neste caso custam vidas e um "foi mal, aí, não tinha como antecipar" não resolve.

Em tempo: o governador de São Paulo João Doria pediu aos moradores da Grande São Paulo que voltem para casa ao saírem do trabalho, porque as chuvas devem continuar por mais 48 horas. Infelizmente, para algumas pessoas em áreas de risco, a recomendação pode ser fatal.

Post atualizado às 18h10, do dia 11/03/2019, para atualização do número de óbitos. 

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.