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Leonardo Sakamoto

Para azar da banda podre do Estado, Marielle vai viver para sempre

Leonardo Sakamoto

14/03/2019 08h56

Foto: Mídia Ninja

O Brasil tem um hábito de evitar – ao máximo – que mandantes de assassinatos sejam devidamente responsabilizados. Alguns não passam para a história, pois permanecem anônimos. Outros são conhecidos, mas não processados. E há aqueles que, montados no poder político e econômico, postergam suas punições indefinidamente.

Nesta terça (12), quando a Polícia Civil e o Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro prenderam os milicianos Ronnie Lessa, policial militar reformado, e Élcio Queiroz, o ex-PM, denunciando-os de executarem Marielle Franco e Anderson Gomes, veio um alento acompanhado de um temor. Será que o Estado, mais uma vez, se dará por satisfeito em apontar quem puxou o gatilho e não chegará nos que mandaram matar e no porquê?

Poderíamos enfileirar uma quantidade enorme de casos em todo o país em que pessoas política e economicamente poderosas não foram devidamente punidas pelo que fizeram. Três casos que também tiveram grande repercussão internacional mostram que a caminhada no caso de Marielle e Anderson pode ainda ser bem longa.

A morte de quatro funcionários do então Ministério do Trabalho enquanto realizavam uma fiscalização rural de rotina na região de Unaí, Minas Gerais completou 15 anos em 28 de janeiro. Apontados pela Polícia Federal como mandantes, os irmãos Antério e Norberto Mânica, grandes produtores de feijão, chegaram a ser condenados, mas ambos seguem soltos, jogando com a Justiça. Os pistoleiros e os seus contratantes foram os primeiros a serem considerados culpados. Depois de apontado como mandante da chacina, Antério foi eleito prefeito de Unaí. Duas vezes.

O Tribunal de Justiça de São Paulo, recentemente, ordenou novo julgamento dos policiais envolvidos no Massacre de Carandiru que, em 2 de outubro de 1992, executou 111 pessoas na Casa de Detenção. O falecido coronel Ubiratan Guimarães, que coordenou a ação, chegou a ser sentenciado e, depois, absolvido, eleito deputado estadual. Sua defesa disse que estaria agindo no "estrito cumprimento do dever". Mas seus chefes, Pedro Franco de Campos e Luiz Antônio Fleury Filho, então secretário de Segurança Pública e governador do Estado de São Paulo, nunca chegaram a ser responsabilizados judicialmente pelo caso.

Quatro anos depois, em 7 de abril de 1996, 19 trabalhadores sem-terra foram massacrados pela Polícia Militar em Eldorado dos Carajás, no Pará. As cenas dos corpos dilacerados dos trabalhadores correu o mundo. Condenou-se os oficiais envolvidos, mas o então governador Almir Gabriel (que ordenou a desobstrução da rodovia) e o secretário de Segurança Pública, Paulo Câmara (que autorizou o uso da força policial), não foram processados. E para os fazendeiros que deram apoio logístico à operação, o silêncio.

Tão assustador quanto a execução planejada de uma das vereadoras mais votadas de nossa segunda maior cidade e vitrine do país no exterior é o fato de que, logo após seu assassinato, os holofotes foram automaticamente para a banda podre dos agentes públicos de segurança, colocando os milicianos entre os principais suspeitos de serem os executores. E de que linhas de investigação foram abertas para analisar se o crime ocorreu a mando de outras organizações criminosas, essas criadas no seio da política, envolvendo membros de partidos, como o MDB. Recaíram suspeitas sobre deputados envolvidos em esquema de propina da máfia do transporte público no Rio, que podem ter optado por uma vingança contra aqueles que eram uma pedra em seu sapato.

A percepção naturalizada de que agentes e ex-agentes do Estado podem ser os perpetradores de um assassinato contra uma representante eleita e liderança social é um sinal inequívoco de falência de nosso contrato social. Precisamos, portanto, da resolução da morte de Marielle e Anderson não apenas por Justiça, mas para garantir as promessas constitucionais de 1988 a quem ficou de fora de festa.

O Estado brasileiro, fomentando através de sua incompetência ou má fé o sentimento de impunidade ao longo do tempo, criou um ambiente em que se acredita que é relativamente fácil e tranquilo assassinar alguém como Marielle Franco. "Pode matar", é a mensagem ainda hoje enviada pelos Três Poderes diante da ausência da punição dos mandantes não só da execução de Marielle, mas de tantos outros crimes pelo país. Mulheres, negras, lésbicas, pessoas de origem pobre, defensores de direitos humanos, políticos que não se vendem ao sistema são ainda mais matáveis porque ainda não se sabe nem os nomes, nem as razões deste caso.

Ao mesmo tempo, o recado que o país envia à sua população e ao mundo é de que, além dos direitos sociais, econômicos, culturais e ambientais, os mais pobres por aqui também não devem contar com direitos civis e políticos. Pois seus representantes são descartáveis e podem ser executados tanto por sua atuação, quanto para servirem de recado. E que o Rio tem dono e não é a população honesta que nele habita.

Independente de quem seja apontado como responsável pelo assassinato de Marielle e Anderson, o Estado já é culpado de muitas formas e maneiras pelo que aconteceu. Talvez uma das principais tenha sido tentar roubar a esperança de que lutar por uma vida diferente, mais digna, como ela lutou, vale a pena. Ou seja, de fazer com que nos esqueçamos de que, após uma noite escura, há sempre um amanhecer.

O nome de Marielle, espalhado em cartazes e bocas em todo o país, e as multidões que, neste 14 de março, exigem Justiça, mostram que os velhacos da banda podre do Estado falharam vergonhosamente. Ao tombar uma árvore, conseguiram plantar muitas sementes.

É claro que incomoda o fato de que, um ano após o assassinato, o Estado brasileiro ainda não tenha apontado quem foi o mandante do crime e a razão da encomenda. Contudo, o nome de Marielle está mais vivo do que nunca, incomodando. Basta ver a tentativa de políticos de relativizar a importância do caso, como se fosse um homicídio como qualquer outro. Ou de dizer que ela não era ninguém antes do assassinato.

Incomoda o próprio presidente da República que, sempre que pode, tenta eclipsar manifestações sobre o caso, falando do (abominável) atentado que sofreu quando candidato. Um comportamento inseguro, de quem parece incomodado com o tamanho de Marielle. Bobagem. São duas histórias importantes que precisam ser solucionadas. Mas, como o presidente deve perceber, ele está vivo, ela não.

Não é que as vidas de Marielle e Anderson valem mais do que a dos 64 mil mortos de forma violenta anualmente no Brasil. Mas a morte de Marielle, que dedicava a vida a ajudar a vida dos outros, se tornou símbolo da busca por Justiça, inclusive para esses 64 mil, diante de um poder público que, não raro, pouco se importa se você vive ou morre. E, para azar da banda podre do Estado brasileiro, símbolos vivem para sempre.

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.