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Leonardo Sakamoto

Terror na Nova Zelândia: o "supremacismo branco" continua espalhando mortos

Leonardo Sakamoto

15/03/2019 13h47

Foto: AFP

Um ataque em duas mesquitas em Christchurch, terceira cidade mais populosa da Nova Zelândia, deixou 49 mortos e 48 feridos, entre eles, crianças, nesta sexta (15). O atirador, um australiano, transmitiu o massacre via uma live no Facebook.

No manifesto de ódio deixado por ele, descreve-se como "um homem branco comum", de "sangue europeu", "etnonacionalista" e "fascista". Com seu ato, quis, segundo ele, "mostrar aos invasores que nossas terras nunca serão as terras deles, enquanto um homem branco viver".

(Seria interessante perguntar a maoris e aborígenes, alguns dos habitantes originais daquelas terras, quem são os "invasores". Depois, aplicar as mesmas perguntas às populações indígenas no Brasil.)

Independentemente do nível de sanidade ou psicopatia do autor, o discurso que ele reproduziu como justificativa para o massacre está alinhado às porcarias ultranacionalistas e xenófobas pregadas por grupos políticos de extrema direita ao redor do mundo. Porcarias que conquistam cada vez mais espaço à medida em que seus líderes assumem o poder em diferentes países no vácuo da descrença com a política tradicional.

Donald Trump, presidente dos Estados Unidos, solidarizou-se com as vítimas na Nova Zelândia, chamando o ocorrido de "perverso ato de ódio"O mesmo Trump, contudo, havia afirmado "nós devemos manter o 'mal' fora de nosso país!", em sua conta no Twitter, em referência a uma decisão do Tribunal Federal de Seattle que suspendera temporariamente o seu decreto impedindo a entrada de pessoas de sete países de maioria islâmica em 2017.

Essa paradigmática declaração é útil para entender o massacre desta sexta nesse pacífico país da Oceania. A ideia de "mal" usada por Trump tem significados que se desdobram. A princípio representa o terrorismo de algumas organizações que ele afirma tentar evitar – apesar de nenhuma pessoa dos países barrados por ele, até aquele momento, ter cometido atentados nos EUA. Mas ao baixar uma proibição indiscriminada a todos os cidadãos desses países, Trump os tornava suspeitos simplesmente porque foram proibidos de entrar. E a percepção do que seja o "mal" se estende, metonimicamente, aos inocentes. É a tática do linchamento: se adoto uma punição contra você é porque você fez algo errado.

E isso está longe de corresponder à realidade. Mayra Cotta, pesquisadora da New School for Social Research, em Nova York, mostrou, em artigo neste blog na época, que 64% dos ataques com armas em espaços públicos nos Estados Unidos eram causados por homens brancos que nasceram naquele país. Homens, frequentemente supremacistas brancos, que entraram armados com sua ideologia racista em jardins de infância, escolas, universidades, cinemas, igrejas, mesquistas, repartições e escritórios e começaram a matar as pessoas ao seu redor.

Líderes nacionalistas em várias partes do mundo evitam se referir aos seus "soldados", que matam e morrem em nome dessa ideologia, como o "mal". Até porque seria muito difícil explicar a seus eleitores – pelo menos os que buscam soluções fáceis para o medo que sentem – que parte da violência em seu país está ligada a desvios e questões mal resolvidas de seus próprios indivíduos e sociedade e não necessariamente a agentes externos.

Trump, o presidente da maior potência global, cumpriu um papel importante para os ultranacionalistas em todo o mundo ao escancarar tudo isso sem mediações e esticar a corda, ultrapassando o limite da racionalidade e atingindo os pilares da democracia. Ao eleger inimigos, tachá-los (famílias de latino-americanos como ladrões e estupradores, muçulmanos, terroristas, chineses, desleais…) e afirmar que estão apodrecendo a sua sociedade, transfere os problemas econômicos e sociais para terceiros.

O "mal" é sempre o outro, o refugiado, o islâmico, o negro, o homossexual, o que não se parece conosco, nunca nós mesmos. Mesmo que tenha sido um homem branco de "sangue europeu" a causar o mal na Nova Zelândia.

Com já disse aqui, esse discurso empodera muita gente. Nos Estados Unidos, ajudou a que centenas de desprezíveis racistas e neonazistas marchassem em Charlottesville, carregando tochas e entoando palavras de ordem contra negros, migrantes, homossexuais, judeus. Mas também no resto do mundo. Os 49 migrantes em Christchurch eram culpados, na cabeça do atirador. Culpados porque iam morrer por suas mãos para o reestabelecimento da ordem.

O que fazer quando o "mal" somos nós mesmos? A resposta que vem sendo largamente adotada é encontrar um inimigo e insistentemente transferir o problema a ele até que nos esqueçamos de nossa responsabilidade.

Por fim, a xenofobia brasileira.Mais de 3 milhões de brasileiros moram fora do país, de acordo com o Itamaraty, enquanto 750 mil estrangeiros vivem por aqui – números da Polícia Federal. Temos menos de 0,4% de população estrangeira, enquanto a média mundial é 3,4%. E outras palavras, estamos em déficit com o mundo.

Mesmo assim os migrantes estrangeiros são cada vez mais acusados de roubar empregos, trazer violência, sobrecarregar serviços públicos. Enquanto isso, grande parte deles faz o trabalho sujo que poucos querem fazer. Limpam latrinas, costuram roupas, recolhem o lixo, extraem carvão, processam gado, constroem casas. Até porque os países que recebem esses trabalhadores ganham com sua situação de subemprego e a não garantia de todas as proteções. 

Em grande cidades como São Paulo, o preconceito perdeu a vergonha, saiu das sombras e passou a operar à luz do dia. Ataques violentos a bolivianos e haitianos foram registrados nos últimos anos. Pedidos de devolução de refugiados sírios são lidos nas redes sociais. Pilhas de roupas de venezuelanos são queimadas durante conflitos em Roraima. Apesar de muitos brasileiros abrirem os braços para os migrantes e os refugiados, o país não é o local mais acolhedor do mundo para estrangeiros, mesmo tendo sido construído com base em seu suor e sangue. Pelo contrário, vamos dando sinais contrários à solidariedade, como a saída do Pacto Global para Migração Segura, Ordenada e Regular, das Nações Unidas, em janeiro – medida defendida pela extrema direita. 

E assim, um passo por vez, vamos nos tornando o mal que sempre criticamos.

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.