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Leonardo Sakamoto

Ao lado de Trump, Bolsonaro elege fantasmas como inimigos do país

Leonardo Sakamoto

19/03/2019 16h18

Foto: AFP

Jair Bolsonaro trouxe os alvos de sua cruzada ideológica para o discurso oficial, ao lado de Donald Trump, nos jardins da Casa Branca, nesta terça (19), como parte de sua visita ao presidente norte-americano.

Afirmou que o Foro de São Paulo "esteve próximo de conquistar o poder em toda América Latina", reforçando as teorias da conspiração sobre esse fórum de partidos de esquerda latino-americanos. E disse que ambos os países estão irmanados contra a "ideologia de gênero", o "politicamente correto" e as "fake news".

Melhor se fosse contra o desemprego, a pobreza, a corrupção, a guerra, a violência urbana. Mas aí seria trabalhar de verdade, articulando, dialogando, compondo, correndo atrás de recursos. A verdade é que combater fantasmas de um comunismo que nunca existiu de fato por aqui é mais fácil do que enfrentar problemas reais.

O presidente poderia dizer que o Brasil busca ajuda para reduzir as 64 mil mortes violentas todos os anos ou os 12,7 milhões de desempregados. Preferiu dizer que o Brasil está irmanado aos EUA com o objetivo de enfrentar a Guerra Fria e a mamadeira de piroca.

Se essa inversão de prioridades de Bolsonaro ocorresse apenas em Washington, tudo bem, seria apenas mais uma questão de vergonha alheia que teríamos que lidar. Mas, não. Quando ele pisar os pés em Brasília, as prioridades continuarão sendo essas mesmas. Para desespero daqueles que o apoiam e acreditam que está atuando firmemente para montar uma base parlamentar a fim de aprovar a Reforma da Previdência.

Contudo, combater fantasmas serve para transformar algo insignificante em um inimigo terrível. Anima, dessa forma, a batalha da extrema direita ruidosa, aliada de primeira hora de ambos os presidentes, cujo engajamento é peça-chave para governos que pretendem manter as campanhas eleitorais acesas até o seu último dia.

Nesse sentido, o discurso na Casa Branca ecoa os discursos de posse de Bolsonaro e da fatia de seus ministros mais estridentes, que reforçaram que o novo governo foi eleito para uma cruzada (na acepção medieval na palavra) a fim de livrar o Brasil de posicionamentos e pautas progressistas, que seriam – segundo eles – a fonte do mal.

Como já disse aqui, é papel de Bolsonaro e assessores convencerem a opinião pública que a população brasileira lhes deu mandato para liberá-la do socialismo, do marxismo, do "globalismo", do "gayzismo", do "coitadismo", do "abortismo", do "mimimismo" e qualquer outra fantasia que viralize nas redes sociais a partir de sua ilimitada criatividade e a de seus parceiros da extrema direita internacional – por mais que isso não seja a realidade. Enquanto isso, é papel da imprensa e da sociedade fiscalizá-lo, pressioná-lo e denunciá-lo quando ele extrapolar seu mandato constitucionalmente atribuído.

Liberar o Brasil de algo que não existe, como uma hegemonia socialista, é igual a tentar aterrorizar uma população para os riscos do Homem do Saco ou da Mulher de Branco. Por outro lado, fomentar um estado de apreensão constante é fundamental para que a base do bolsonarismo mantenha-se coesa na guerra política.

Bolsonaro sabe que terá mais liberdade para sua pauta de costumes e comportamentos se conseguir reduzir significativamente o desemprego e a violência, temas sob o comando de Paulo Guedes e Sérgio Moro. Afinal, a parte da população que votou por mudança e não por fiscalizar o sexo alheio aceitaria mais facilmente a excentricidade temática por ele proposta desde que o Estado garanta segurança econômica e o direito de ir e vir sem ser molestado. Deveria, portanto, se preocupar em seus discursos em explicar como irá fazer isso, de preferência sem jogar a conta nas costas dos mais vulneráveis e sem cortar mais direitos.

Por fim, faz sentido que Bolsonaro tenha dito, no pronunciamento oficial, que acredita na reeleição de Trump em 2020, atuando como cabo eleitoral de luxo. Não é uma questão apenas de torcida pessoal, mas de necessidade. Se um presidente mais à esquerda, escolhido entre os democratas, substituir o atual mandatário, o brasileiro perderá um importante suporte onde, hoje, amarra sua narrativa ideológica.

Em tempo: Bolsonaro chama de "ideologia de gênero" o esforço de desconstrução da ideia de que os homens valem mais do que mulheres, ideia que tem justificado muita violência. "Politicamente correto" deixou de significar apenas o cuidado com a linguagem que marginaliza minorias e passou a ser usado para criticar a luta pelos direitos humanos – que, ao impedir que se use a liberdade contra a liberdade de terceiros, estaria deixando o mundo chato. 

E "fake news", para ele, não é o significado acadêmico desse fenômeno – publicações que viralizam em redes sociais a partir de informações comprovadamente falsas, com um formato que simula o estilo jornalístico para enganar o público, ocultando sua autoria. Mas toda e qualquer notícia que lhe causa constrangimento ou lhe desagrada. A disputa que ele trava não é apenas de ideias, mas do significado das palavras.

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.