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Leonardo Sakamoto

Bolsonaro põe democracia no pau de arara ao tentar reescrever golpe de 1964

Leonardo Sakamoto

30/03/2019 11h47

Foto: Ricardo Moraes/Reuters

Precisamos proteger o ensino de História nas escolas contra a sanha estúpida de pessoas e movimentos que desejam que você aprenda a data em que João Goulart foi deposto em 1964, mas que isso não representou um golpe de Estado e foi feito dentro da lei. Ou que os estudantes decorem o texto da Lei Áurea, mas não debatam por que o 13 de maio de 1888 não significou autonomia aos negros e negras deste país. Ou que defendam que a criança decore que a Segunda Guerra Mundial começou quando a Alemanha invadiu a Polônia, mas reclama se professores discutem, em sala, que o nazismo não foi de esquerda.

Prestes a relembrar os 55 anos do golpe de 1964, o Brasil é empurrado em direção ao retrocesso. De um lado, defensores de uma Escola sem Cérebro lutam para que a incapacidade de reflexão viralize e emburreça nosso futuro. De outro, o ministro da Educação, Ricardo Vélez, posto no cargo pelo polemista e astrólogo Olavo de Carvalho, preocupa-se por filmar crianças cantando o hino nacional enquanto elas seguem analfabetas funcionais. Flanando sobre tudo isso, um presidente que defende que ditadura não existiu e ordene que ela seja comemorada, diz que "tortura" é um "probleminha" e homenageia o torturador Carlos Brilhante Ustra, falecido coronel e ex-chefe do DOI-Codi (câmara de horrores da ditadura), um dos maiores bandidos que já andaram por esta terra.

No atual contexto brasileiro, o conhecimento de História não é um dádiva, mas uma maldição. Porque a partir desse momento, você se torna inimigo de uma parte do Estado e alvo do ódio daqueles que acreditam tudo aquilo que vá de encontro ao que acreditam é mentira e precisa ser calado. Mas também recebe o fardo de ser corresponsável por um diálogo que deve ser paciente e não-violento, na esperança de que entendam que a dignidade humana, construção de milhares de anos dessa História, é uma conquista que deve ser defendida a todo o custo.

No dia 10 de maio de 1933, montanhas de livros foram criadas nas praças de diversas cidades da Alemanha. O regime nazista queria fazer uma limpeza da literatura e de todos os escritos que desviassem dos padrões impostos. Centenas de milhares queimaram até as cinzas. Einstein, Mann, Freud, entre outros, foram perseguidos por pensarem diferente da maioria. A opinião pública e parte dos intelectuais alemães se acovardaram ou acharam pertinente o fogaréu nazista descrito acima, levado a cabo por estudantes que apoiavam o regime. Deu no que deu. Hoje, vemos muitos se acovardarem diante de ondas burras, intolerantes e violentas frente à necessidade de defender a História. Não, não estou comparando nossa sociedade com a nazista. Apenas dizendo que a burrice é atemporal. E universal.

Completamos, neste domingo (31), 55 anos do golpe de 1964. Temos lidado com o passado como se ele tivesse automaticamente feito as pazes com o presente. Não, não fez. E o impacto de não entendermos, refletirmos, discutirmos e resolvermos o nosso passado se faz sentir no dia a dia com parte do Estado aterrorizando, reprimindo e torturando parte da população (normalmente mais pobre) com a anuência da outra parte (quase sempre mais rica).

Pois a ditadura é revivida não apenas quando semoventes inconsequentes – que usam sua liberdade de expressão contra a liberdade de expressão alheia – vão às ruas pedir "intervenção militar constitucional", vulgo, golpe. Mas também quando alguém é torturado e morto pelas mãos do Estado ou de pessoas treinadas por ele. Seja pela banda podre da polícia ou por sua versão organizada, as milícias, que usam táticas refinadas na ditadura a fim de garantir a ordem (nas periferias das grandes cidades) e o progresso (no campo).

Tempos atrás, aqui em São Paulo, um homem de 39 anos foi encontrado enforcado pouco mais de duas horas depois de ter sido preso. Supostamente, era traficante e transportava cocaína. Supostamente, teria se enforcado usando um cadarço de sapato. Questionado por jornalistas se não é praxe da polícia retirar os cadarços de sapatos de presos, um policial afirmou que o acusado usou um pedaço de papelão para arrastar um cadarço que estava fora da cela. Seria cômica se não fosse ofensiva uma justificativa dessas.

A celebração do golpe militar e tudo o que ele representa não ocorre apenas a cada 31 de março, mas retorna toda vez que o Estado mata, não como um infeliz efeito colateral da proteção da população ou de si mesmo, mas como execução de uma política de limpeza e contenção social. Ou quando uma parcela da sociedade pensa "bem feito" ou "quem mandou se meter com a coisa errada" diante de imagens de corpos de jovens, ligados ao crime ou não, sangrando, aqui e ali, em uma comunidade após uma "incursão" de agentes de segurança. Ou que defende a execução sumária – sejam tanto as feitas legalmente quanto as "informalmente" pela mão do próprio do próprio Estado e de seus tumores milicianos – como dano colateral em nome do bem comum.

Os responsáveis pela parte mais sombria da ditadura, seus aliados e seguidores precisam saber que a sua versão da História – de que duas décadas de assassinatos, censura e violência foram necessárias para o bem da coletividade – não vai vingar. Pois não agiram pelo bem do Brasil. Mataram, roubaram e calaram para o bem de si mesmos.

Deveríamos transformar o 31 de Março em feriado nacional. Talvez assim possamos garantir que esse dia nunca seja encarado por nós e, principalmente, pelas gerações que virão como um grande Primeiro de Abril, como se o golpe de 1964 nunca tivesse existido. Cicatriz que não deveria ser escondida, mas permanecer como algo incômodo, à vista de todos, funcionando como um lembrete da nossa incompetência em por fim às heranças daquele tempo.

Em tempo: Quando a Corte Interamericana de Direitos Humanos – órgão jurisdicional da Organização dos Estados Americanos (OEA) – considerou o Estado brasileiro responsável pela falta de punição dos responsáveis ​​pela tortura e assassinato do jornalista Vladimir Herzog, em 25 de outubro de 1975, também questionou a aplicação da Lei da Anistia, de 1979, que seria usada para encobrir e proteger os assassinos. A Corte lembrou que, por ser crime de lesa humanidade, ele é imprescritível e não passível de anistia. O Supremo Tribunal Federal mantém a validade dessa lei.

Herzog foi morto nas dependências do Exército após ter se apresentado para prestar um depoimento. A ditadura, covarde, afirmou que ele havia cometido suicídio. A versão, justificada por um laudo médico forjado e uma foto grosseiramente montada, não convenceu. Com isso, o assassinato de Vlado, que trabalhava na TV Cultura, serviu para mostrar à população o destino de quem discordava do regime. E se tornou um marco na luta contra as arbitrariedades do governo militar.

Tortura, crime contra a humanidade, só prescreve em um país que enterrou sua dignidade e seu amor próprio em nome da governabilidade.

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.