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Leonardo Sakamoto

Cruzada de Bolsonaro por um Brasil medieval completa 100 dias

Leonardo Sakamoto

10/04/2019 04h00

Bolsonaro usa camisa falsificada do Palmeiras em reunião de equipe

Bolsonaro acredita que foi eleito para empreender uma Cruzada, no significado medieval da palavra. Quer libertar o país tanto de um comunismo inexistente quanto de comportamentos e costumes progressistas – que, em sua opinião, são a origem do mal. Por isso, dedicou boa parte de seus 100 primeiros dias de governo para travar, através das redes sociais, épicos combates contra malignas golden showers e perversas cartilhas de saúde para adolescentes com ilustrações de órgão sexuais.

Também tentou reescrever a História, defendendo que o nazismo era de esquerda, que não houve golpe, nem ditadura militar e que a democracia é uma concessão das Forças Armadas ao país. E, orgulhosamente, demonstrou vassalagem a Donald Trump. E, ao seu lado, disse que Estados Unidos e Brasil estão irmanados contra a "ideologia de gênero", o "politicamente correto" e as "fake news". Que, como todos sabemos, são os reais problemas da nação.

Para mostrar alinhamento à ideologia salvacionista de algumas linhas religiosas cristãs dos Estados Unidos, importadas para nosso território, que creem que o sucesso do projeto sionista de Grande Israel é uma condição prévia à Segunda Chegada de Cristo, Bolsonaro prometeu mudar a embaixada brasileira de Tel Aviv para Jerusalém – clamada por israelenses e palestinos como sua capital. Por enquanto, instalou apenas um escritório de negócios e disse que a mudança deve ser paulatina. Há probabilidade de retaliação dos países árabes às nossas exportações de proteína animal, da qual são os principais compradores externos, entre outras coisas piores.

Isso não é só cortina de fumaça com objetivos políticos ou exagero para manter seguidores excitados e prontos para a batalha virtual. Bolsonaro realmente acredita nisso por mais ridículo que pareça. Alimentado por paranoias e teorias da conspiração, muitas de suas ações seguem pelo caminho iluminado pela filosofia superficial do polemista e astrólogo Olavo de Carvalho. De seu retiro na Virgínia, o guru da família nomeou dois cavaleiros para ajudar Bolsonaro em sua missão medieval –  um no ministério da Educação e, outro, no de Relações Internacionais. E entrou em guerra com a ala militar do governo por estar agindo para consertar as bobagens do chefe. Bolsonaro, em silêncio, ouviu quando Olavo xingou os generais de "bando de cagões".

O presidente não está genuinamente interessado na Reforma da Previdência ou mesmo em privatizações de setores estratégicos. Quase botou água no chope da venda da Embraer para Boeing, por exemplo. Apenas quem acredita em Coelho da Páscoa e Papai Noel também caiu no conto da conversão liberal do capitão reformado na economia, logo ele que começou a carreira defendendo interesses sindicais dos militares. Contudo, Bolsonaro sabe que nem a cruzada ou mesmo ele se sustentam apenas com o apoio dos seguidores fanáticos nas redes sociais. Ainda mais que seu vice, o general Hamilton Mourão, já mostrou ao grande empresariado e ao mercado financeiro que pode ser uma alternativa mais racional. E está a um impeachment de distância.

Esses 100 primeiros dias também serviram para provar que, confirmando as expectativas, Jair Bolsonaro é a pessoa mais despreparada a assumir o comando do Poder Executivo em muito, muito tempo. E olha que a concorrência é dura. Se ele contasse com um projeto de país, esse despreparo o inviabilizaria. Mas como o objetivo passa por desconstruir o que está aí, ele ainda tem chances de realizar seu objetivo com sucesso.

Isso está adiantado, por exemplo, na questão socioambiental, em que o norte é o "liberou geral" – dos agrotóxicos, passando pelas políticas de mudanças climáticas e contra o desmatamento até os territórios indígenas.

Desde que assumiu, contudo, a população vem perdendo a paciência com ele, o que se traduz na queda dos índices de aprovação principalmente entre os mais pobres. Se ainda tivessem emprego, poder de compra e segurança, aceitariam a excêntrica pauta fiscalizatória do cu alheio. Apenas 32% consideram o governo Jair Bolsonaro ótimo e bom, segundo pesquisa Datafolha. Outros 30% classificam-no como ruim e péssimo – a pior avaliação entre presidentes eleitos para um primeiro mandato desde a redemocratização. Bolsonaro ostentava 49% de ótimo e bom em janeiro, passando para 39% em fevereiro e 34% em março, segundo o Ibope.

Enquanto ele combate fantasmas e moinhos de vento, o mundo real segue em compasso de espera. Diante de uma "febre" de 13,1 milhões de desempregados e quase 4,9 milhões de desalentados, que desistiram de procurar emprego porque creem que não vão encontrá-lo, Bolsonaro preferiu comprar briga com o "termômetro". Ao invés de propor maneiras de fomentar a criação de postos de trabalho ou capacitar a mão de obra, culpa a metodologia do IBGE pelo aumento do número de pessoas desocupadas.

Ao mesmo tempo, nem ele, nem seu governo, apresentaram projetos consistentes para reduzir as quase 64 mil mortes violentas por ano, de acordo com levantamento do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Pelo contrário, facilitou o acesso à posse de armas e seu ministro da Justiça apresentou um pacote legislativo que terá como um dos efeitos colaterais reduzir a punição de policiais que matam em serviço.

A chegada ao poder de um discurso que fomenta a violência, por outro lado, tem gerado vítimas. Sob Bolsonaro, agentes de segurança e fazendeiros desfrutam de uma sensação de impunidade.

Relatos como a execução de Evaldo Rosa dos Santos por militares do Exército diante de sua família após o carro em que estavam ser alvo de mais de 80 tiros, em Guadalupe, Zona Norte do Rio de Janeiro, no último dia 7, é um exemplo. A tortura e chacina de seis pessoas, entre elas, Dilma Ferreira Silva, coordenadora do Movimento dos Atingidos por Barragens, em Tucuruí, no Pará, a mando de um fazendeiro é outro. Três teriam sido mortos porque denunciariam trabalho escravo ocorrido em suas terras. Outros três porque ele queria ficar com as terras do assentamento onde viviam.

Como disse aqui no dia 26 de março, Bolsonaro age como se comandasse o "Ministério da Verdade" – apresentado no romance "1984", de George Orwell, com a função de ressignificar os registros históricos e qualquer notícia que fosse contrária ao próprio governo. Para tanto, sua máquina de guerra nas redes sociais e nos aplicativos de mensagens, fundamental para sua eleição, continua ligada e é usada para atacar violentamente a imprensa, o Congresso Nacional, o Supremo Tribunal Federal e qualquer um que critique ao invés de dizer amém.

O "Ministério da Verdade", de Bolsonaro, inclui castrar a liberdade de ensino conquistada desde a redemocratização, com uma intervenção no significado e no sentido da educação pública. Ao que tudo indica, a troca de Ricardo Vélez por Abraham Weintraub apenas coloca alguém competente para executar o serviço. Inclui também enquadrar liberdades conquistadas desde a Constituição de 1988 e dizer que a sociedade está corrompida e degradada por conta delas, precisando de refundação. E, claro, que "os direitos trabalhistas" são privilégios que produzem crise econômica.

O problema é que um político eleito com uma narrativa antissistêmica, contra tudo o que está aí, não consegue articular com os políticos que fazem parte do sistema para aprovar projetos e reformas de forma sem comprometer a imagem de Conan, o Bárbaro. A questão é que, tendo passado três décadas defumando no conflito, a ponto de dizer que uma deputada "não merecia ser estuprada", ele dificilmente será capaz de agir de forma republicana. Para compensar, ele e seus ideólogos dizem que a população estará ao seu lado e marchará às ruas para defender suas pautas. Quais pautas? A Reforma da Previdência? A Carteira Verde e Amarela sem direitos trabalhistas? Ahã, Cláudia, senta lá.

Nestes 100 primeiros dias, o presidente da República acreditou de forma messiânica que, ao revelar a "Verdade" às pessoas, ela as libertaria. Do jeito em que as coisas andam, elas podem querer  se libertar dele.

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.