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Leonardo Sakamoto

O orgulho da "burrice" continua sua escalada rumo ao sucesso no Brasil

Leonardo Sakamoto

27/04/2019 23h52

Burrice não é a falta de um conhecimento específico. Um camponês de uma comunidade isolada pode não saber navegar na internet. Mas duvido que você saiba produzir alimento a partir da terra como ele. É impossível saber sobre tudo e a beleza de estar em sociedade é a complementaridade dos saberes, a ponto de precisarmos uns dos outros para sobreviver.

Burrice também não é separar sujeito e predicado por vírgula. Muita gente não entende isso e desvaloriza a opinião dos outros por não compartilhar dos mesmos padrões de fala ou do mesmo universo simbólico. É burrice achar que usar ou não a norma culta da língua seja condição para participar do debate público.

Burrice é quem menospreza o conhecimento, chegando a odiar quem o detém ou quem busca aprendizado.

Burrice é encarar preconceitos violentos como sabedoria.

Burrice, montada na soberba, pensa que já sabe de tudo a ponto de tachar os que discordam de sua visão de mundo como mal informados, comprados ou manipulados sem apresentar dados que corroborem a crítica. Ou tenta calar as vozes diferentes da sua por encarar a dissonância educada, cordial e baseada em fatos como ruído e não como música.

Burrice sempre tenta destruir, de forma violenta, o conhecimento que ameaça jogar luz sobre ela própria.

Burrice é incapaz de aceitar o próprio erro, transferindo a culpa ao outro. Ou, diante de um questionamento, foge da autocrítica, dizendo que outra pessoa ou partido também faz a mesma coisa.

Burrice, aliás, não pede desculpa. Pois a burrice de um indivíduo acha que é absolvida pela burrice de outro indivíduo ou do coletivo.

Burrice não aceita a existência de qualquer fato que vá na direção contrária de sua crença. Diante de denúncias ou críticas baseadas em fatos, brada que tudo é "notícia falsa" por não admitir o conteúdo. Essa burrice, que não aceita a existência da realidade, ocorre da direita à esquerda, ou seja, não é monopólio de ninguém.

Quanto tempo leva entre as pessoas proibirem e rasgarem livros e começarem a queimá-los, com orgulho, em praça pública? Como já disse aqui, antes, se alguém me mostrasse uma imagem de pessoas enlouquecidas em torno de montanhas de livros em chamas, eu me lembraria de "Fahrenheit 451", de Ray Bradbury – que foi transposto para a tela por François Truffaut (1966) e Ramin Bahrani (2018). Na obra de ficção, bombeiros queimavam publicações, proibidas sob o argumento de que opiniões individuais tornavam pessoas antissociais e infelizes. O pensamento crítico era combatido. Quem lia era preso e "reeducado". Se uma casa tinha livros, bombeiros eram chamados para por tudo a baixo.

Hoje, se me mostrassem uma imagem assim, logo me perguntaria: onde desta vez? Algum grupo fundamentalista islâmico, cristão, judeu, budista, hindu? Interior dos Estados Unidos? Neonazistas europeus? Síria? Coreia do Norte? China? São Paulo, Rio ou uma grande cidade brasileira? Tempos atrás, um casal de amigos conta que circulou na lista de WhatsApp de seus filhos mensagens sugerindo que jogassem fora os livros "comunistas" de seus pais. Durante o processo de impeachment, pessoas foram assediadas por carregarem livros de Marx. Livros sobre direitos humanos foram depredados em uma biblioteca na Universidade de Brasília.

No dia 10 de maio de 1933, montanhas de livros foram criadas nas praças de diversas cidades da Alemanha. O regime nazista queria fazer uma limpeza da literatura e de todos os escritos que desviassem dos padrões impostos. Centenas de milhares queimaram até as cinzas. Einstein, Mann, Marx, Freud, entre outros, foram perseguidos por ousarem pensar diferente. A opinião pública e parte dos intelectuais alemães se acovardaram ou acharam pertinente o fogaréu nazista, levado a cabo por estudantes que apoiavam o regime. Deu no que deu. E hoje vemos muitos se acovardarem diante de ondas intolerantes frente à livre circulação do conhecimento humano e a possibilidade de seu aprendizado. Não estou comparando nossa sociedade com a de movimentos totalitários. Apenas dizendo que a burrice pode ser atemporal. E universal.

A escola tem um papel central. Aprender como fazer a discussão de valores com respeito a ideias divergentes e à ética é tão importante quanto absorver conhecimento técnico.

A filosofia é a mãe de todas as ciências, sejam elas humanas, exatas ou biológicas, e dialoga com todas elas para dar sentido à inovação e ao próprio conhecimento. A sugestão do governo Bolsonaro de reduzir investimentos em filosofia e ciências sociais para focar naquelas que deem "retorno imediato ao contribuinte" é mais um chiste ideológico e não vale uma golden shower. Primeiro porque a economia seria ridicularmente pequena. Segundo, porque o governo não tem poder para isso frente à autonomia universitária. Mas é um retrato do momento em que estamos.

Pois a burrice, como manifestação da negação do conhecimento, avança quando os governantes acham possível construir uma sociedade melhor e mais justa jogando na lata do lixo os instrumentos usados para refletirmos sobre seus erros e acertos.

E, no mais, burrice é, diante de nuvens sombrias que já estão sobre o horizonte, abraçar a cumplicidade pelo silêncio.

Em tempo: este texto é uma atualização de outro que aqui publiquei. Achei que valia a pena trazer a discussão novamente, dado os esforços para acelerar nossa marcha em direção ao vazio.

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.