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Leonardo Sakamoto

Ataque do governo às universidades federais é tristemente ideológico

Leonardo Sakamoto

01/05/2019 01h18

O presidente Jair Bolsonaro e o ministro da Educação Abraham Weintraub. Foto: Terceiro/Agência O Globo

Por Maíra Kubík Mano, Mariana Possas, Rafael Lopes Azize e Sue Iamamoto, professores da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal da Bahia (UFBA), especial para o blog

Nesta terça-feira, nós, docentes da Universidade Federal da Bahia, acordamos atordoados com mais um elemento distópico deste Brasil de 2019: o ministro da Educação, Abraham Weintraub, declarou ter bloqueado dotações orçamentárias de três universidades escolhidas a dedo, a nossa universidade entre elas. Os critérios, explicou ele, eram a promoção de "balbúrdia", "evento ridículo" e o baixo desempenho acadêmico medido "pelo ranking", este último não especificado pelo ministro.

O vocabulário do Weintraub, mais apropriado a uma conversa de almoço de domingo do que à fala de um ministro de Estado que dirige uma das mais importantes pastas do país, se não a mais importante, pode levar alguns desavisados à chacota. Não nos enganemos: trata-se de um sério ataque ao pensamento livre, que tenta enquadrar as universidades brasileiras em um modelo acrítico impossível e que promove a ignorância como política de Estado.

Aos fatos. Na semana passada, três grandes universidades federais, a UFBA, a Universidade de Brasília e a Universidade Federal Fluminense, tiveram 30% das suas dotações orçamentárias bloqueadas pelo Ministério da Educação. Weintraub justificou os bloqueios, em entrevista ao jornal O Estado de S. Paulo, nesta terça (30): essas instituições estariam fazendo "balbúrdia" e "evento ridículo". Em que pensava o ministro? Como exemplos, mencionou "Sem-terra dentro do campus, gente pelada dentro do campus". Perguntado se isso não caracterizaria ingerência e censura nas universidades, o ministro não respondeu e também não especificou a que eventos se referia. E acrescentou outro motivo para os bloqueios: o desempenho acadêmico.

Depois, diante da repercussão negativa, o ministro estendeu o corte para as outras universidades federais.

Suas afirmações se sustentam? Não, em nenhum dos pontos. Nem quanto a balbúrdia, nem quanto à "gente pelada", nem quanto aos indicadores de desempenho acadêmico.

Sobrevivendo – apesar dos cortes e contingenciamentos

As universidades federais vêm enfrentando cortes e contingenciamentos nos anos mais recentes, sempre sob a justificativa do "ajuste fiscal". Em 2015, enfrentamos uma dura greve dos docentes contra essas medidas de austeridade, quando os investimentos foram cortados em 47%. Em 2017, as verbas repassadas se reduziram em R$ 247 milhões com relação a 2016. Em 2018, a queda foi ainda maior. Agora, o que vemos é pior: para além da redução de investimentos, assistimos a um recorte ideológico da tesoura.

Na sua entrevista ao Estado de S.Paulo, o ministro mencionou "desempenho acadêmico" como uma justificativa para os bloqueios de dotação orçamentária. Não especificou em quais documentos de medição de desempenho se baseava. Sabemos que os critérios usados nos rankings de desempenho de universidades são, no mínimo, questões em discussão aberta, havendo entre os especialistas discordâncias de superfície e de fundo acerca deles. No entanto, mesmo deixando isso à parte, os rankings mais considerados no país e no mundo indicam exatamente o inverso no que diz respeito às três universidades singularizadas pelo ministério: elas subiram posições.

Basta citar dois desses rankings: Times Higher Education e Ranking Universitário Folha. No caso da UFBA, a Reitoria publicou nota na qual explicita o impacto do bloqueio de parte da dotação orçamentária sobre as suas operações, e também os ganhos de desempenho alcançados nos últimos anos, a despeito de reduções sucessivas de dotações.

As razões apresentadas pelo ministro para os cortes, além de não corresponderem à verdade factual, como vimos acima no tocante a desempenho acadêmico, não se qualificam como razões legítimas. A despeito de não ter o ministro detalhado exatamente os eventos que interpreta como "balbúrdia" e "ridículos", temos duas indicações: as menções a eventos com presença de "sem-terras" e de "gente pelada". Por extrapolação, digamos, o ministro se referia a eventos com uma natureza de reflexão e expressão política, num caso, e artística, no outro. Estamos supondo que o ministro tinha em mente performances havidas em 2018, particularmente na UFF, uma das universidades escolhidas para cortes.

Se essa interpretação é razoável, então de duas uma: ou o ministro quer eliminar da universidade o seu caráter de espaço do pensamento crítico, da experimentação livre – das ciências às artes, da mecatrônica à antropologia -, reduzido-a à função escolar de mero local de transmissão de informação, ou então ele se arvora a função de supervisor ideológico.

Nenhuma das duas hipóteses estão contempladas constitucionalmente. O que vemos não é uma preocupação com a missão constitucional das universidades, com a qualidade de ensino, ou com o gasto de dinheiro público em instituições que, eventualmente, poderiam não dar o retorno exigido pela sociedade – como o governo alegou no final do dia, após muitas críticas, e ainda indicou a ampliação dos cortes para as demais universidades e institutos federais – mas sim uma busca por controle sobre as atividades que se desenvolvem dentro das universidades. E isto configura uma ingerência sobre a autonomia universitária.

O papel das universidades

É importante lembrar que as universidades públicas cumprem um papel, no Brasil, que é intransferível, e foi construído ao longo de várias décadas. Por isso, a sociedade como um todo precisa tomar para si, urgentemente, a tarefa de defender essas instituições. Elas são o espaço em que a sociedade reflete sobre si mesma, em livres experimentos do pensamento e da imaginação. É assim em todos os países que buscam soluções inclusivas e criativas para os seus problemas. Isso não significa andar pelado pela universidade! Significa que levamos aos nossos alunos e pesquisadores a possibilidade de refletir sobre a sociedade e o mundo, a partir de ferramentas específicas, adequadas às diferentes disciplinas.

No entanto, esse exercício do "pensar o mundo" pode significar trazer à tona problemas da sociedade em seus mais variados setores que porventura estivessem velados, e isso não é fácil, nem confortável. A filosofia, a sociologia e as ciências sociais em geral incomodam, e sempre incomodaram, porque, ao falar da sociedade como ela é, apontam o dedo para algumas realidades das quais nos envergonhamos, que queremos esconder ou simplesmente esquecer, e também imaginam o que a sociedade pode ser – preferencialmente numa direção inclusiva e de expansão do espaço de direitos e garantias, tanto individuais como sociais.

Podemos mencionar muitos exemplos que mostram o desconforto que as ciências humanas podem causar, especialmente para determinados grupos: o estudo e análise da violência contra as mulheres permitem indicar e caracterizar a realidade do machismo; a pesquisa e discussão sobre o altíssimo número de assassinatos de jovens negros permitem que enxerguemos com mais nitidez o fato de que ainda temos muitos problemas raciais; o estudo e análise sobre dados sócio-econômicos geram constatações de que crescimento econômico pode vir junto com redução das oportunidades de trabalho qualificado e bem remunerado e caminhar no sentido contrário da eliminação de trabalho escravo; pesquisas na área de biologia e ecologia podem indicar que empresas e governo estão tomando direções contrárias à preservação do meio ambiente. Essas realidades são todas desconfortáveis e, para alguns, muito inconvenientes. Mas elas existem e por essa razão é papel da universidade falar sobre elas.

É preciso dizer ainda que nos últimos anos a universidade pública viveu uma transformação profunda: a partir da adoção da política de cotas e da ampliação de ações de permanência de estudantes (residências universitárias, refeitórios, auxílio transporte, bolsas de iniciação científica etc.), este hoje é um espaço diversificado. Temos pessoas oriundas de todas as classes sociais, uma ampliação significativa de negros e negras, LGBTQIs e indígenas e quilombolas.

A universidade tem se transformado, então, nesse espaço no qual é possível o encontro da sociedade em sua diversidade. Ainda estamos longe do ideal, mas estamos numa busca de construir um ambiente em que indivíduos e grupos sociais possam pensar coletivamente e encontrar soluções para problemas concretos. A grande proposta de articular o tripé universitário do "ensino, pesquisa e extensão" é um caminho nesse sentido. Queremos perder, reduzir, desmontar tudo isso? Não, queremos proteger um grande projeto de universidade pública, plural e inclusiva.

Por essas razões, estamos profundamente preocupados com a possibilidade de que o governo federal pretenda não apenas executar um corte nos orçamentos da UFBA, da UnB e da UFF – o que já seria grave e contrário aos interesses do país -, mas também iniciar uma política direta de controle ideológico.

Um executivo cujo chefe proíbe discordâncias internas desfavorece a elaboração de diagnósticos complexos, que exigem debate e confronto de ideias, em busca de soluções para os problemas reais do país. Pior do que isso, o ataque a espaços de construção coletiva e múltipla de saberes, como a universidade, apresenta um forte indício de autoritarismo político.

Nesse cenário, não perdem somente nossas universidades, seus docentes, técnicos, estudantes e os trabalhadores terceirizados, sempre os primeiros a serem atingidos. Perdemos como país, como seres humanos, capazes de enfrentar os nossos problemas de frente e construir futuros melhores.

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.