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Leonardo Sakamoto

Educação de qualidade sem dinheiro é igual a X-burger sem queijo

Leonardo Sakamoto

04/05/2019 19h12

O presidente Jair Bolsonaro e o ministro da Educação Abraham Weintraub. Foto: Terceiro / Agência O Globo

É inspirador ver exemplos de criatividade e superação de alunos e professores diante das adversidades, mas reconhecer que esse deve ser o padrão a ser assumido pelo Estado é afirmar o "cada um por si e Deus por todos" como metodologia e o "jeitinho brasileiro" como política pública.

Não há possibilidade de resolvermos os problemas da educação sem grandes injeções de recursos, afinal não estamos no estágio de manutenção da excelência, mas de garantir um mínimo de dignidade.

Os cortes anunciados pelo governo federal na área de educação básica (ao menos R$ 2,4 bilhões que estavam previstos para investimentos foram bloqueados) e superior (as universidades federais perderam R$ 2,2 bilhões) vão na contramão disso.

Quando a PEC do Teto dos Gastos foi aprovada, durante o governo Temer, avisamos que Educação e Saúde sofreriam o impacto em pouco tempo se o reajuste das receitas se desse apenas pela inflação e não considerasse os desafios que temos pela frente nessas áreas, que demandam crescentes investimentos. Agora, o governo passa a faca em toda a Esplanada dos Ministérios para cumprir a meta fiscal e a área de Educação foi atropelada.

"Ah, seu chato! Eu acho super inspiradora a história da Ritinha, do Povoado Botas de Judas, que passa a madrugada encadernando sacos de papel de pão e apontando lascas de carvão, que servirão de lápis, para seus alunos da manhã seguinte. Ela sozinha dá aula para 176 pessoas de uma vez só, do primeiro ao nono ano, e perdeu peso porque passa seu almoço para o Joãozinho, um dos alunos mais necessitados. Ritinha deu um depoimento emocionante ao Fantástico, dia desses, dizendo que, apesar da parca luz de candeeiro de óleo de rato estar acabando com sua visão, ela romperá quantas madrugadas for necessário porque acredita que cada um da sociedade deve fazer sua parte."

Para quem não se lembra, Joãozinho é velho personagem fictício usado por este blog para explicar os absurdos na educação.

Ele comia biscoitos de esterco com insetos e vendia ossos de zebu para sobreviver. Mas não ficou esperando o Estado, nem seus professores lhe ajudarem e, por conta, própria, lutou, lutou, lutou (às vezes, contando com a ajuda de um mecenas da iniciativa privada com sentimento de culpa ou feeling para ganho de imagem institucional), andando 73,5 quilômetros todos os dias para pegar o ônibus da escola e usando folhas de bananeira como caderno. Venceu na vida sem a ajuda de ninguém e, hoje, é presidente de uma multinacional.

Ritinha simboliza a construção de um discurso que joga nas costas do professor a responsabilidade pelo sucesso ou o fracasso das políticas públicas de educação. Esqueçam a redução no orçamento da educação para pagamento dos juros da dívida, esqueçam os desvios nos recursos da merenda pela corrupção, a incapacidade administrativa, o sucateamento e a falta de formação dos profissionais, os salários vergonhosamente pequenos e planos de carreira risíveis, a ausência de infraestrutura, de material didático, de segurança para se trabalhar.

Ritinha é, para muita gente, um problema e a sua própria solução.

Ao mesmo tempo, Joãozinho simboliza aquele papo meritocrático do self-made man, bonito, mas vazio, de que os alunos podem conseguir vencer, com esforço individual e apesar de toda adversidade, "ser alguém na vida". A exibição repetida das vitórias de alguns poucos Joãozinhos, que povoam os sonhos dos liberais festivos, passa uma mensagem do tipo "se não consegue ser como Joãozinho e vencer por conta própria sem depender de uma escola de qualidade e de um bom professor, você é um verme nojento que merece nosso desprezo". Mesmo que histórias como essas sejam um ponto fora da curva e não o padrão. Daí para tornar o sistema educacional como um todo algo cada vez mais acessório é um passo.

Joãozinho é, para muita gente, um problema e a sua própria solução.

Sabe o que dá desgosto? Saber que parte daqueles que vão às ruas segurando suas plaquinhas "Por mais educação", "Um país sem educação não tem solução" e "Anauê! Quero Educação para Você", não acredita que salários mais altos, mais gastos em formação técnico-pedagógica e melhor infraestrutura tenha a ver com a melhoria da sociedade. E repetem o mesmo discurso que uma educação de qualidade não passa por pesados investimentos novos, mas por sinergia e boa vontade.

Muita gente ergue plaquinhas porque esses mantras são superficiais. É bonito pedir educação para todos e todas. Mas a mudança real de modelo que isso significa na prática fere os valores defendidos por quem almeja um Estado mínimo. Educação de qualidade, desde que você trabalhe e pague por ela.

Muitos desses também repetem bobagens como "a pessoa é pobre porque não estudou ou trabalhou". Pois acham que basta trabalhar e estudar para ter uma boa vida e que um emprego decente e uma educação de qualidade é alcançável a todos e todas desde o berço. Acham que as leis foram criadas para garantir Justiça e que só temos um problema de aplicação. Não se perguntam quem fez as leis, o porquê de terem sido feitas ou questiona quem as aplica.

Qual educação é a saída? Aquela defendida pelo pessoal de campanhas como "Amigos do Joãozinho"? Educar por educar, passar dados e técnicas, sem conscientizar o futuro trabalhador e cidadão do papel que ele pode vir a desempenhar na sociedade, é o mesmo que mostrar a uma engrenagem o seu lugar na máquina e ponto final?

E como já disse aqui uma miríade de vezes, uma das principais funções da escola deveria ser produzir pessoas pensantes e contestadoras que podem colocar em risco a própria estrutura política e econômica montada para que tudo funcione do jeito em que está. Educar pode significar libertar ou enquadrar. Que tipo de educação estamos oferecendo? Que tipo de educação precisamos ter?

Apesar da evolução dos últimos anos, parte dos jovens de escolas públicas têm entrado no ensino médio sabendo apenas ordenar e reconhecer letras, mas não redigir e interpretar textos. Uma educação sem grandes investimentos para garantir um mínimo de dignidade, de baixa qualidade, insuficiente às características de cada lugar, que passa longe das demandas profissionalizantes e com professores mal tratados pode mudar a vida de um povo?

Não. Mas é isso que muita gente quer.

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.