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Leonardo Sakamoto

Jovens saem analfabetos da escola, mas foco é combater comunismo imaginário

Leonardo Sakamoto

05/05/2019 18h16

O Burger King, tal como o Mc Donald's e, é claro, a Coca-Cola, mais do que empresas globalmente conhecidas que nasceram nos Estados Unidos, são símbolos do próprio capitalismo. O fato da primeira estar, hoje, sob o controle de Jorge Paulo Lemann, a segunda pessoa mais rica do Brasil, é fruto das características do próprio sistema.

Não deixa de ser irônico, portanto, que a empresa esteja sendo acusada de "comunista" e esquerdista nas redes sociais por defensores fiéis de Jair Bolsonaro.

(Sim, é difícil para alguém, progressista ou conservador, que tenha abraçado a razão como instrumento de interpretação do mundo, entender esse tipo de declaração.)

A rede de fast food ironizou em um comercial a censura baixada pelo presidente, que havia mandado censurar outro comercial, este do Banco do Brasil, no qual apareciam jovens atores negros e brancos e uma atriz trans. A justificativa era defender a família brasileira – argumento que não vale uma golden shower. A empresa aproveitou para surfar na situação constrangedora, considerando que a busca por se vender como plural está no centro de sua estratégia de marketing e de posicionamento de marca.

Ao mesmo tempo, as declarações do prefeito de Nova York, Bill de Blasio, contra uma homenagem planejada para Bolsonaro na cidade o levou a ser chamado de comunista nas redes sociais. Blasio é bem conhecido por suas posições progressistas e seu ativismo. É casado com Chirlane McCray, militante negra dos movimentos feminista e LGBTQI. Mas daí a chamar o Partido Democrata de comunista como alguns estão fazendo seria caso de internação, caso não apoiássemos a luta antimanicomial. Mesmo a presença de parlamentares bem progressistas no Congresso, como Alexandria Ocasio-Cortez, Elizabeth Warren e Bernie Sanders, não altera o fato de que o partido é um dos pilares do capitalismo norte-americano.

As redes sociais também afirmaram que a cantora Madonna, a revista Economist, as Nações Unidas, o jornal New York Times, a Rede Globo, o Facebook, o cantor e compositor Roger Waters, o filósofo e economista conservador Francis Fukuyama e a deputada de extrema-direita Marine Le Pen são comunistas. 

Formadores de opinião que se reconhecem à direita no espectro político ou mesmo militares linha-dura têm sido chamados de comunistas ao baterem de frente com a ala ideológica do governo federal.

Qualquer um de que não gosto, vira comunista.

Muitos aprenderam que comunismo é algo ruim antes mesmo de receber informações sobre o que ele é – ou seja, existem os críticos conscientes e tem o povo que não leu nada além de material voltado à guerra política e se deu por satisfeito quanto à natureza da "ameaça vermelha". Ou seja, aprenderam apenas a repudiar, mas sem embasamento algum. E, acredite, há muito subsídio para poder criticar tanto a teoria quanto a prática.

Ouviram de seus "mentores" que comunismo é um tipo de "governo" que "matava" milhões, formado por "vagabundos que não gostavam de trabalhar" e ajudava a "perverter sexualmente" as "pessoas de bem" e a "destruir as famílias", ganhando muito com a "corrupção". O fato é que, diante do esvaziamento do conteúdo original e sua associação forçada com tudo o que há de ruim, a palavra "comunismo" e suas variações acabaram virando uma espécie de palavrão. Chamar alguém de comunista tornou-se uma ofensa grave para um grupo de pessoas. Poucos entendem o que é a coletivização dos meios de produção.

Combater o fantasma de um comunismo que nunca existiu por aqui é mais fácil do que enfrentar problemas reais, como falta de internet, de lousa, de papel higiênico nas escolas. Porque seguir os passos de quem xinga a tudo e a todos pelo YouTube, com a profundidade de um pires, é fácil. Já pesquisar e construir soluções práticas demandam uma racionalidade que assusta muita gente.

Como já disse aqui, combater fantasmas serve para transformar algo insignificante em um inimigo terrível. Anima, dessa forma, a batalha da extrema direita ruidosa, aliada de primeira hora do presidente, cujo engajamento é peça-chave para um governo que pretende manter a campanha eleitoral acesa até o seu último dia. Às custas da dignidade das novas gerações.

O sucesso relativo de teorias conspiratórias que vêm comunistas escondidos entre os flocos de Sucrilhos no café da manhã ou enrolados junto a pacotinhos de preservativos poderia ser reduzido com a melhoria da educação.

Esse mesmo pessoal que chama empresa multinacional de comunista enxerga "vermelhos" infiltrados nas escolas e universidades para doutrinar a mente dos estudantes e alertam que uma suposta doutrinação gayzista-globalista-político-partidária por militantes comunistas travestidos de professores vai levar ao fim da família e da propriedade privada. Tudo com muita mamadeira de piroca e "kit gay" distribuídos aos alunos.

Claro que há casos de professores que fazem proselitismo partidário em sala de aula. Mas eles são minoria frente ao universo de docentes. E, por outra: estudantes têm senso crítico. Quem acha que eles são um rebanho de ovelhas manipuláveis nunca deu aula.

O Brasil conta com formação precária dos docentes e com alunos que saem do Ensino Médio analfabetos funcionais. Assiste a roubo, ausência e baixa qualidade da merenda escolar. Paga baixos salários aos professores e não fornece estrutura suficiente em todas as escolas. Mantém um teto orçamentário, aprovado no governo passado, que restringe novos investimentos em uma área que ainda está distante de um mínimo aceitável. E mesmo com tudo isso, acaba de bloquear recursos no orçamento governo federal na área de educação básica (ao menos R$ 2,4 bilhões que estavam previstos para investimentos foram bloqueados) e superior – as universidades federais perderam R$ 2,2 bilhões.

Vamos estrangulando aquilo que levaria à consciência sobre nós mesmos e o mundo que nos cerca sob a justificativa de que essa consciência é, em si, a raiz dos problemas. O ministro da Educação, em meio a isso, faz questão de mostrar que o problema das universidades é o pensamento crítico.

Quanto tempo leva daqui até as pessoas proibirem e rasgarem livros e começarem a queimá-los, com orgulho, em praça pública? Como já disse aqui, antes, se alguém me mostrasse uma imagem de pessoas enlouquecidas em torno de montanhas de livros em chamas, eu me lembraria de "Fahrenheit 451", de Ray Bradbury – que foi transposto para a tela por François Truffaut (1966) e Ramin Bahrani (2018). Na obra de ficção, bombeiros queimavam livros, proibidos sob o argumento de que opiniões individuais tornavam pessoais antissociais e infelizes. O pensamento crítico era combatido. Quem lia era preso e "reeducado". Se uma casa tinha livros, bombeiros eram chamados para por tudo a baixo. Hoje, pergunto onde é que isso aconteceu dessa vez.

É motivo de indignação ver o que foi feito com um ser humano que teve todo o espaço destinado à sua capacidade de raciocínio ocupado pelo depósito contínuo de bobagens e ódio. Pois, tendo desistido de controlar os rumos de sua vida e terceirizado sua reflexão, tornou-se uma alegoria, não um indivíduo.

Provavelmente, abraçou um discurso que lhe dava explicações toscas por causa do medo da incerteza do mundo que o cerca. Ou seja, preencheu as lacunas à sua frente, que lhe davam insegurança, com qualquer resposta – mesmo que ela não se sustente diante das pergunta fundamentais.

Diante disso, o Burger King e Nova York estarem se tornando comunista faz sentido. Por mais que não faça sentido algum.

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.