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Leonardo Sakamoto

Decreto facilita assassinatos e violência no campo, diz coordenador da CPT

Leonardo Sakamoto

08/05/2019 12h13

Foto: José Cruz/Agência Brasil

Decreto de Jair Bolsonaro, publicado, nesta quarta (8), no Diário Oficial da União, facilita o porte de armas (o direito de transportá-las fora da residência ou do negócio) para outras categorias que não estavam previstas anteriormente na legislação, entre elas, "residentes em áreas rurais". O decreto considera que essas categorias não precisam "demonstrar a sua efetiva necessidade [de portar a arma] por exercício de atividade profissional ou de ameaça à sua integridade física", o que é critério previsto na lei 10.826/2003. Motoristas de cargas e jornalistas que atuem na cobertura policial também fazem parte da longa lista.

Na avaliação de José Batista Afonso, advogado e coordenador da Comissão Pastoral da Terra, instituição ligada à Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), em Marabá (PA), "o decreto facilita as condições para o aumento no número de assassinatos de povos e trabalhadores do campo". Batista defende trabalhadores vítimas de violência na região, palco de massacres e chacinas, como o de Eldorado dos Carajás (1996) e a de Pau D'Arco (2017). Entre outras ações, foi advogado de acusação no caso da morte da irmã Dorothy Stang, assassinada em 2005, em Anapu.

De acordo com ele, ao facilitar o porte de armas de fogo a qualquer residente na área rural sem demonstrar a real necessidade, o decreto vai contribuir para a legalização de uma situação de prática criminosa que já existe no campo por parte de quem tem recurso para se armar. "Faz tempo que fazendeiros utilizam armas ilegalmente contra indígenas, quilombolas, trabalhadores rurais e qualquer um que se contraponha a seus interesses. Quem as usava para cometer crimes, vai ter a situação legalizada. Quem não usava, poderá começar a usar, agora de forma elástica", afirma.

O coordenador da CPT aponta que o decreto deve contribuir também para o aumento das milícias rurais formados por seguranças contratados e armados por proprietários rurais. Milícias como essas têm sido acusadas de envolvimento nas mortes de trabalhadores e lideranças no campo.

De acordo com o relatório divulgado, anualmente, pela Comissão Pastoral da Terra, 960.630 pessoas estiveram envolvidas em conflitos no campo, em 2018, frente a 708.520, em 2017 – um aumento de 35,6%. A Região Norte foi a que demonstrou maior crescimento (119,7%) e conta com mais da metade dessa população. Em conflitos de luta pela terra, especificamente, foram 118.080 famílias (2018) em comparação às 106.180 (2017), crescimento de 11%. O número de famílias expulsas de terras pela ação privada aumentou 59% em relação a 2017. Em 2018, segundo a CPT, o setor privado foi responsável por expulsar 2.307 famílias, enquanto o poder público despejou 11.235.

As novas regras de Bolsonaro devem ser questionadas na Justiça e no próprio parlamento.

"O presidente só pode emitir um decreto, ou seja, criar uma norma, se ela seguir os estritos limites da legislação aprovada pelo Congresso Nacional e pela Constituição. O decreto de Jair Bolsonaro claramente extravasa os limites da lei, ampliando as possibilidades para o porte de arma de fogo. E, por isso, é um claramente ilegal." A análise é de Eloisa Machado de Almeida, professora da FGV Direito SP e coordenadora do Centro de Pesquisa Supremo em Pauta.

"Ele também contraria os fundamentos da decisão do Supremo Tribunal Federal que considerou que a restrição do porte de arma de fogo é uma medida para garantir o direito à segurança e à vida. Além de ilegal, portanto, o decreto é inconstitucional", afirma.

Na avaliação de Maria Laura Canineu, diretora do escritório da Human Rights Watch no Brasil, "o país enfrenta uma 'epidemia de violência', com altos níveis de homicídios, incluindo por policiais e militares, e de crimes contras as mulheres. A experiência empírica disponível mostra que, quando se facilita o acesso às armas, a violência aumenta". Para ela, "até agora o governo brasileiro não apresentou pesquisas e estatísticas sobre o contrário".

Uso excessivo da força em propriedades

Batista alerta para outra mudança trazida pelo decreto. Hoje, quem tem apenas a posse de arma pode usá-la para defesa pessoal e de seu negócio, nos limites de sua residência ou empresa. Bolsonaro ampliou a posse, dos limites da casa para todo o perímetro da fazenda.

"Na Amazônia, o tamanho das fazendas é imenso. Mas, maior ainda, é o tamanho 'pretendido" dessas propriedades, em que fazendeiros alegam serem donos de áreas que, na verdade, não lhes pertencem. Áreas que são da União ou de outras pessoas", explica. De acordo com ele, ao longo da ocupação da região, grileiros estiveram envolvidos em casos de chacinas e violências contra povos do campo e, agora, poderão alegar que atiraram para se defender dentro do perímetro de uma fazenda que, na verdade, não é sua.

Após Jair Bolsonaro ter anunciando, no dia 29 de abril, que iria enviar um projeto de lei ao Congresso Nacional prevendo que proprietários rurais não fossem punidos ao defender à bala suas propriedades de ocupações, este blog conversou com especialistas que criticaram a decisão do presidente. Eles disseram que a não punição em caso de um ataque à vida de um proprietário rural ou urbano, sua família e empregados já configura legítima defesa e está prevista em lei. Se o dono perceber que sua vida está ameaçada, será inocentado se usar da força para se defender. Claro, respeitado a proporcionalidade desse uso da força, limitada ao suficiente para cessar a agressão. A lei também já prevê que invasão ou ocupação de uma propriedade possa ser impedida com uma reação à altura. Ou seja, em casos em que não há atentado para a vida, não se pode atentar contra a vida.

"O Estado permite ao indivíduo reagir, em casos excepcionais, quando ele não está lá para defendê-lo. Mas a reação deve seguir parâmetros de proporcionalidade e razoabilidade e seja o suficiente apenas para cessar a agressão", explicou ao blog na ocasião Alamiro Velludo Salvador Netto, advogado criminalista e professor titular do Departamento de Direito Penal, Medicina Forense e Criminologia da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. "Contudo, permitir que alguém reaja de forma excessiva é transferir poder do Estado ao cidadão não apenas para se proteger, mas também julgar e punir."

"Não existe legítima defesa da propriedade. Hoje, pode-se tomar medidas para não entrar na propriedade, mas sem cometer excesso", reforçou o advogado criminalista Alexandre Martins, que atua na defesa de movimentos sociais. Bolsonaro desconsiderou a questão do excesso e deixou em aberto as reações possíveis vinda de um "cidadão de bem" como sendo legais.

O problema é que, em crimes envolvendo povos e trabalhadores do campo, a centena de quilômetros da cidade mais próxima, raramente há testemunhas. "Se já é difícil apurar crimes no campo na situação atual, imagine como ficará após esse decreto, principalmente nas regiões isoladas", diz José Batista Afonso.

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.