Governo corta verba da educação, mas facilita aula de tiro para crianças
Há algo muito, muito errado em um país cujo governo realiza cortes bilionários no orçamento da educação básica e superior, reduz o número de bolsas para alunos de mestrado e doutorado (que sustentam a produção de conhecimento científico no Brasil) e ataca a pesquisa acadêmica que não lhe agrada ideologicamente, enquanto facilita o treinamento de crianças e adolescentes com armas de fogo.
Antes do decreto de Jair Bolsonaro facilitando o porte e a posse de armas, publicado nesta quarta (8), no Diário Oficial da União, crianças e adolescentes menores de 18 anos precisavam de autorização da Justiça para frequentar aulas de tiro. Agora, um "talkey" de seus responsáveis legais é suficiente.
Enquanto isso, estudantes e professores de escolas e universidades de todo o país reúnem-se para entender o tamanho do estrago deixado pela lâmina dos ministros da Educação, Abraham Weintraub, e da Economia, Paulo Guedes, e do presidente da República. É certo que os cortes do governo, se não forem revertidos, significarão a redução na qualidade do ensino e na produção de ciência. A justificativa é o ajuste fiscal, mas há também um certo grau de chantagem por conta do trâmite da Reforma da Previdência. Querem mostrar que se a proposta não for aprovada do jeito deles, esse será o novo normal.
Como já disse aqui, gostamos de um autoengano. Um dos maiores é acreditar que o amanhã, subentendido na expressão "O Brasil é o país do futuro", é algo alcançável. Não, não é. Tem a mesma natureza das placas engraçadinhas de boteco que dizem "Fiado, só amanhã". É uma abstração que nunca chega porque, ao nos aproximarmos dele, alguém o chuta para frente, lá longe.
A situação já seria difícil com a regra do Teto dos Gastos, mudança constitucional que limitou o crescimento dos gastos públicos à variação da inflação por duas décadas, capitaneada por Michel Temer. Com um presidente que tem demonstrado ojeriza ao conhecimento, então, a situação torna-se calamitosa.
O aumento da destinação de recursos para áreas como educação e saúde estava ocorrendo acima da inflação para responder às demandas sociais presentes na Constituição Federal de 1988 e, consequentemente, tentar reduzir não apenas o imenso abismo social, mas desenvolver economicamente o país. Afinal, não há crescimento viável e sustentável sem educação de base, mas também sem a produção de conhecimento científico nacional, pensado para o Brasil e suas peculiaridades. Caso fosse apenas pela inflação, anualmente teríamos tido até agora apenas um reajuste de custos e o tamanho da oferta de serviços educacionais e de produção científica não cresceria, permanecendo tudo como está. Essa é a realidade que enfrentaremos daqui em diante. Com a população aumentando e os desafios também, vai faltar dinheiro, cada vez mais.
O déficit público precisa ser equacionado e soluções amargas devem ser propostas e discutidas. Contudo, a reclamação do cobertor curto pela crise econômica para justificar que nada pode ser feito além de cortes e mais cortes esconde soluções que não interessam ao andar de cima. Cobrar dividendos de acionistas de grandes empresas e destinar à educação e à ciência, por exemplo, não resolveria a questão, mas seria uma forma de nos trazer mais para perto daquele amanhã citado acima. Isso representaria não apenas qualidade de vida aos cidadãos, profissionais capacitados, empresas fortalecidas e competitividade e produtividade para o país, mas também uma forma de reduzir nossa desigualdade estrutural – que não cobra quase nada de impostos dos super-ricos enquanto esfola a classe média.
Neste momento, a resistência a medidas tomadas sem justificativas decentes e sem diálogo está em estudantes e professores que se mobilizam. Não aceitam uma política que represente "40 anos (para trás) em 4" na educação.
Estudantes que já estavam alertas desde que, em outubro do ano passado, durante o processo eleitoral, a Justiça e a polícia censuraram aulas, debates, atividades e manifestações em dezenas de universidades públicas. Naquele momento, a indicação de vitória do atual presidente empoderou a parcela de servidores públicos que concorda com suas ideias. E a perspectiva dele no poder fez com que se sentissem mais livres para fazer valer uma interpretação das leis avessa à garantia de direitos fundamentais.
À medida em que os estudantes se organizam em defesa da escola pública, hordas raivosas nas redes sociais os atacam, chamando-os de "vagabundos" e "drogados". Gostaria de entender a cabeça de quem passa a vida inteira reclamando que jovens fogem da escola, que não dão a devida importância à educação e não se importam com o futuro do país e, agora, tacha de "baderneiros" os estudantes que realizam atos, aulas, debates, reuniões, manifestações sobre o momento político que o país está vivendo, não se furtando a lutar a favor aquilo que toda sociedade civilizada deveria ter como um de seus principais objetivos.
Devem ser os mesmos que ignoram roubo de merenda, escolas sem estrutura, universidades quebradas, salários de professores achatados, falta de investimento para formação e treinamento, falta de recursos pedagógicos, falta de transporte escolas e acreditam que o grande mal da educação é a "doutrinação político-partidária".
Uma das principais funções da escola deveria ser produzir pessoas pensantes e contestadoras que possam colocar em risco a própria estrutura política e econômica montada para que tudo funcione do jeito em que está. Educar pode significar libertar ou enquadrar.
Como sempre digo, se seu filho ou filha está na escola ou na universidade discutindo política ou protestando em nome do próprio futuro, parabéns. Você conseguiu construir com eles o significado de "liberdade" e "dignidade". Portanto, tenha certeza que lhes deu uma boa educação.
Em tempo: O problema de um governo que menospreza professores de História é que não consegue entender a importância de aprender com os erros do passado, mesmo que recente. Atiçar estudantes nunca é uma boa ideia.
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