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Leonardo Sakamoto

Soltura de Temer deveria ser estendida a presos pobres, diz pesquisadora

Leonardo Sakamoto

14/05/2019 17h26

Foto: Ueslei Marcelino/Reuters

A 6a Turma do Superior Tribunal de Justiça concedeu, nesta terça (14), um habeas corpus a Michel Temer em caráter liminar, ou seja, que ainda será julgado adiante. Enquanto isso, o ex-presidente e seu amigo, o Coronel Lima, ficarão em liberdade.

Os ministros aproveitaram para criticar a prisão preventiva. De acordo com a ministra Laurita Vaz, os esforços para "passar a limpo" o país não pode virar caça às bruxas com ancinhos e tochas na mão, buscando culpados sem preocupação de princípios e garantias individuais ao longo de séculos de civilidade". O ministro relator, Antônio Saldanha, afirmou que o fato de que os crimes não envolveram violência, do réu estar afastado de cargos públicos, de não haver provas de que tentou atrapalhar a investigação e dele não representar um risco à ordem pública justifica que espere em liberdade, tendo o passaporte retido, entre outras medidas.

Réu em seis processos, Temer é acusado de ser o líder de uma organização criminosa que desviava recursos públicos. O caso que o levou novamente à cadeia (a primeira vez foi em março deste ano, quando ficou quatro noites preso) é um desdobramento da operação Lava Jato e apura irregularidades na construção da usina nuclear de Angra 3.

Dados divulgados no ano passado pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) apontam que 40% dos presos (241 mil dos 602 mil) no Brasil são provisórios, ou seja, sem condenação. Alagoas têm a maior proporção de provisórios (64,4%), seguido pelo Rio de Janeiro (58%) e o Amazonas (57,5%). Um outro levantamento, da Defensoria Pública do Estado de São Paulo, apontou que, do total de homens que deram entrada em centros de detenção provisória e responderam ao questionário, 62% tinha até 29 anos, 65% se declarava negro e 81% não tinha advogado. Entre as mulheres, 64,5% se declarava negra, 60,7% tinha até 29 anos e 80% não contava com advogado.

"O caso do ex-presidente Temer poderia servir de exemplo para que todas as demais prisões preventivas, como as dos presos pobres, fundadas apenas nas gravidade abstrata do crime sejam revistas." A opinião é de Eloisa Machado de Almeida, professora da FGV Direito SP, coordenadora do Centro de Pesquisa Supremo em Pauta e membro do Coletivo de Advocacia em Direitos Humanos. Ela conversou com o blog sobre a decisão do STJ e sobre a prisão provisória no país.

O Superior Tribunal de Justiça concedeu um habeas corpus ao ex-presidente Michel Temer, preso desde a última quinta (9), e criticou a prisão preventiva.  O Judiciário tem abusado desse instrumento?

O Poder Judiciário é o maior responsável pelo caos do sistema prisional brasileiro. Em grande medida, porque usa a prisão preventiva indiscriminadamente, ignorando que a lei estabelece que ela deva ser a absoluta exceção no sistema criminal. A pessoa só pode ser privada de liberdade nos termos da nossa Constituição e da legislação processual penal se ela já recebeu uma pena transitada em julgado, ou seja, se não há mais recursos para a sua condenação. Ou se ela está, de alguma forma, alterando a ordem pública, frustrando a aplicação da lei penal ou atentando contra a regularidade do processo.

Isso inclui ameaças a testemunhas, risco de fuga, destruição de documentos ou continuidade da pratica criminosa, por exemplo. Se não há uma prova concreta e atual dessas coisas, a mera gravidade abstrata do crime não é suficiente para restringir a liberdade, caso contrário a Justiça estaria antecipando a pena. Nesse sentido, o argumento usado pelo Superior Tribunal de Justiça é bastante correto.

Qual é o perfil daquele que está preso preventivamente no Brasil?

As prisões preventivas afetam sobretudo réus pobres acusados de envolvimento criminoso primário no tráfico de drogas em pequenas quantidades. Essa é a maior parte dos encarceramento provisório no pais. E o Poder Judiciário viola a lei ao manter essas pessoas presas preventivamente sendo que, ao final do processo, elas podem vir a ser absolvidas ou receberem uma pena menor do que o tempo que já passaram na prisão.

Decisões como a de Temer não poderiam ser estendidas a presos pobres?

O caso do ex-presidente Temer poderia servir de exemplo para que todas as demais prisões preventivas, como as dos presos pobres, fundadas apenas nas gravidade abstrata do crime sejam revistas. O direito autoriza que o juiz reconheça a ilegalidade de uma prisão sem ter sido provocado. É o que chamamos de decidir pela liberdade de ofício. O magistrado decide sobre a ilegalidade da prisão provisória e solta um acusado, expedindo um alvará de soltura.

Tanto o Superior Tribunal de Justiça quanto o Supremo Tribunal Federal têm estabelecido súmulas e decisões dizendo que a prisão provisória não pode ser baseada na gravidade abstrata do crime. Mas as varas e os tribunais inferiores desrespeitam a lei e a orientação dos tribunais superiores, mantendo pessoas presas preventivamente, que não cometeram violência, sem terem sido condenadas.

Em 2018, vocês do Coletivo de Advocacia em Direitos Humanos conseguiram que a 2ª Turma do STF concedesse um habeas corpus coletivo em favor de gestantes e mães de crianças de até 12 anos que estejam em prisão provisória para aguardarem o julgamento em liberdade. Naquele caso, outro nome famoso, o de Adriana Ancelmo, esposa de Sérgio Cabral, foi usado como referência…

O caso de Adriana Ancelmo, esposa do ex-governador Cabral, expôs a enorme seletividade do sistema de Justiça, inclusive do Ministério Público e do Judiciário. A lei determinava que mulheres presas provisoriamente grávidas e mães pudessem ser inseridas em regime domiciliar e essa lei deveria valer para todas, para Adriana Ancelmo e todas as demais mulheres em idêntica situação.

Naquela decisão, foram expostas as contradições em que mulheres ricas obtinham a substituição da prisão preventiva pela domiciliar e as mulheres pobres, não. Seletividade do sistema de Justiça significa que a lei é desrespeitada mais para um grupo do que para outro. Mulheres ricas acusadas, mães ou não, dificilmente permanecem presas provisoriamente. Já as mães pobres são encarceradas e seus filhos duplamente prejudicados – pela falta da mãe e pela ausência de acolhimento fora do cárcere. Essas crianças não têm apoio do Estado, contam com suas mães e mais ninguém.

Desde então, mais de 5 mil mulheres foram para casa cuidar de seus filhos. Mas infelizmente outras milhares ainda não. Muitos juízes não as libertaram porque consideram que crimes como venda de drogas ou entram na categoria de crimes cometidos com violência para os quais o STF negou o benefício.

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.