Bolsonaro declara guerra à educação pública como parte de projeto de poder
O governo Bolsonaro conta com uma articulação política incompetente, uma cúpula econômica insensível, um ministro da Educação cheio de ressentimento (chancelado por um "guru" alucinado) e um presidente da República que vive em sua realidade paralela particular. Olhando para essa conjunção de fatores, a impressão seria de que a sequência de decisões tomadas sobre os cortes nos orçamentos de universidades e escolas públicas se explicaria pelo seu comportamento autodestrutivo. Ou seja, que uma mistura de inabilidade, ignorância e insanidade levaram à primeira paralisação nacional desde que o ex-deputado federal assumiu o Palácio do Planalto. Mas não é bem assim.
O governo trata muitas universidades e escolas como inimigas. Em seus discursos, elas aparecem como antros de perversão, nos quais a única produção científica é o desenvolvimento de métodos de cultivo de maconha hidropônica, com o propósito maior de abrigar subversivos que vão inventar maneiras de destruir a família brasileira – de "kit gays" a "mamadeiras de piroca".
Nem Bolsonaro, contudo, acredita nisso totalmente, mas aproveitou o momento de aperto fiscal para atacar uma das instituições com maior potencial de lhe causar problemas exatamente por ser espaço para a liberdade de reflexão, de crítica e de debate. E, por conta de sua pluralidade, é, historicamente e em várias partes do mundo, refúgio do senso crítico quando governos com tendências autoritárias assumem o comando. O enfraquecimento das universidades públicas, antes de ser consequência da crise econômica, é, portanto, parte de um projeto. De poder, não de educação – uma vez que o governo não apresentou, até agora, sua política nacional para a área. Sabemos o que ele quer destruir, não construir.
Quase metade das escolas do país (49%) não está conectada a uma rede de esgoto, cerca de 16% não contam com um banheiro no prédio, 26% não têm água encanada, 21% não possui coleta de lixo regular, de acordo com o Censo Escolar 2018, do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira. Mas o grande problema educacional, segundo o governo, é a doutrinação político partidária gayzista-comunista de crianças.
Mais da metade das escolas (54,4%) não tem biblioteca ou sala de leitura. A manutenção desse número faz sentido em um país em que o presidente da República, em uma live pelo Facebook, orienta que pais e mães arranquem fora as páginas de cartilhas que dão orientações de saúde a adolescentes porque há ilustrações que mostram os órgãos sexuais. Ou que livros que tratam de direitos humanos sejam rasgados em bibliotecas na Universidade de Brasília.
Cerca de 57% das escolas de ensino fundamental têm acesso à internet de banda larga. As demais dificilmente conseguiriam enviar os vídeos solicitados pela gestão do ex-ministro Ricardo Vélez – que pediu que crianças fossem gravadas cantando o hino nacional e ouvindo o lema de campanha eleitoral de Bolsonaro. Assim como Vélez, o atual ministro Abraham Weintraub está na esfera de influência do ex-astrólogo Olavo de Carvalho e sua "guerra cultural".
Em 44% das escolas de nível médio – 39% na rede pública e 57%, na privada – não há laboratório para ensino de ciências. O governo federal, ao invés de investir para resolver esse déficit, fomentando o interesse de jovens para a pesquisa nas áreas de exatas e biológicas, prefere atacar as ciências humanas no ensino superior. O desprezo pela formação em História e Filosofia ajuda, aliás, a explicar por que membros do governo, incluindo o presidente, consideram que o nazismo seja de esquerda.
Alunos de mestrado e doutorado, principalmente das universidades públicas, são a base da pesquisa científica no país, ganhando vergonhosos R$ 1500,00 mensais (bolsas de mestrado da Capes) e R$ 2200,00 (de doutorado). Mesmo operando no limite, tornaram-se alvos dos cortes da educação. Jovens pesquisadores estão dando entrevistas, desabafando, em desespero, por causa da suspensão das bolsas que passariam a receber. E se isso não bastasse, são obrigados a ouvir o ministro da Educação dizer que as universidades públicas promovem balbúrdia. E ler a horda de seguidores de Bolsonaro os chamar de "vagabundos" e "drogados" nas redes sociais.
O Brasil conta com alunos que saem do ensino médio analfabetos funcionais. Assiste a roubo, ausência e baixa qualidade da merenda escolar. Paga baixos salários aos professores e não fornece estrutura suficiente. Mantém um teto orçamentário, aprovado no governo passado, que restringe novos investimentos por duas décadas em uma área que ainda está distante de um mínimo aceitável, em uma bomba-relógio que já está estourando. E, mesmo assim, o governo tem adotado um comportamento arrogante e prepotente.
Pois seu objetivo não é melhorar a educação que temos hoje. Em sua concepção de sucesso, ele precisa fazer o modelo de educação pública, foco de resistência simbólica e social mesmo com todas as dificuldades financeiras, vir abaixo e, a partir das cinzas, construir algo sob uma visão utilitarista, subordinada e pró-mercado da educação. Um modelo em que o naco das instituições privadas de nível superior que praticamente não pesquisam e são voltadas a formar apenas mão de obra e não cidadãos seja a pedra fundamental.
O governo Bolsonaro declarou guerra à educação pública no Brasil em nome desse projeto de poder. O presidente age como se comandasse o "Ministério da Verdade" – apresentado no romance "1984", de George Orwell, com a função de ressignificar os registros históricos e qualquer notícia contrária. Ele precisa dar outra interpretação do passado para controlar o presente e, ao mesmo tempo, ressignificar o presente para criar um futuro que possa chamar de seu. Isso passa por castrar a liberdade de ensino conquistada desde a redemocratização, intervindo no sentido da educação pública.
Ao invés de expor a situação financeira e chamar representantes dos diferentes grupos impactados para construir uma saída, considerando que cortes e contingenciamentos são comuns a momentos de crise, o governo, em um ato tresloucado, anuncia que os cortes nas universidades federais seriam guiados por questões ideológicas. Dada a óbvia repercussão negativa, voltou atrás, afirmando que a porrada seria linear nas universidades federais, mas a sinceridade já havia sido posta à mesa.
Na sequência, a horda de apoiadores radicais do presidente despejaram uma grande quantidade de "material de combate" nas rede sociais – de memes ridicularizando as universidades até fotos de títulos de dissertações e teses, cometendo assédio moral contra pesquisadores de todo o país.
Por tudo isso, o governo fomentou as manifestações de rua pela Educação contra ele, coisa que nenhum político oposicionista havia conseguido fazer até agora. É senso comum que foi o próprio governo Bolsonaro o responsável pela paralisação nacional desta quarta (15). Foi ele quem reuniu estudantes, professores, pesquisadores e funcionários, entre outros, de diferentes orientações ideológicas, diante de ataques frontais às escolas, às universidades e à liberdade de ensino, de pesquisa e de reflexão.
Estudantes e professores sabem que o que está em jogo não são apenas aulas ou a manutenção de pesquisas, mas um projeto de país. Bolsonaro também. O inverno promete ser longo, tanto quanto essa briga.
Em tempo: De Dallas, nos Estados Unidos, Bolsonaro afirmou que as manifestações desta quarta são feitas por "idiotas úteis" e "massa de manobra". Sentiu.
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