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Leonardo Sakamoto

A hashtag "DeportaGreenwald" confirma que o poço não tem fundo no Brasil

Leonardo Sakamoto

11/06/2019 04h49

Após publicar uma série de reportagens trazendo diálogos comprometedores que envolvem o então juiz federal Sérgio Moro e procuradores da força tarefa da Lava Jato, o site Intercept Brasil passou a ser atacado por pessoas exigindo o seu fechamento. E o jornalista Glenn Greenwald, um dos autores das matérias e um dos fundadores do site, tornou-se alvo do ódio de bolsonaristas e daqueles que não aceitam críticas à operação. A xenófoba hashtag #DeportaGreenwald chegou a figurar entre as mais compartilhadas desta segunda (10), no Twitter, pedindo sua expulsão. Glenn, que é norte-americano e mora no Brasil, sendo casado com o deputado federal David Miranda (PSOL-RJ), também vem sofrendo ataques homofóbicos desde que trouxe as informações a público.

Ganhador do Prêmio Pulitzer 2014, um dos mais importantes do jornalismo mundial, Glenn Greenwald foi um dos responsáveis, junto com Edward Snowden, ex-funcionário da CIA, por mostrar como o governo de seu país monitorava ilegalmente e em massa a comunicação dos cidadãos.

Uma parcela da sociedade não entende ataques a jornalistas como um ataque à liberdade de expressão, um pilar da democracia. Vê isso como uma manifestação banal do descontentamento. Incendiada por conteúdos superficiais distribuídos pelas redes sociais e não acostumada ao debate público de ideias, à aceitação da diferença de opinião e à empatia pelo outro, parte para a ignorância. Cede aos discursos fáceis e toscos de analistas, apaixona-se pela violência de seus líderes.

Algumas lideranças sabem o tamanho de sua caixa de ressonância, o fanatismo de alguns de seus seguidores, que agem como torcida organizada, e o gigantismo de redes simpáticas a eles ou por eles controladas. Ao ter consciência disso e não agir para evitar ataques, tornam-se cúmplices das consequências de seus atos. Dizem não incitar a violência com suas palavras. Mas, como já disse aqui, muitas vezes não são eles que atacam, mas é a sobreposição de seus discursos ao longo do tempo que distorce o mundo e torna a agressão banal. Ou, melhor dizendo, "necessária" para tirar o país do caos e levá-lo à ordem. Acabam por alimentar a intolerância, que depois será consumida por fãs malucos ou seguidores inconsequentes que fazem o serviço sujo.

Você pode não gostar da cobertura do Intercept Brasil ou de outros sites, jornais, revistas, canais de rádio e de TV, do posicionamento de colunistas e blogueiros e discordar profundamente da pauta conduzida por um veículo. A imprensa, como qualquer outro ator social, pode e deve ser criticada. Caso veja erro ou má fé em um conteúdo publicado por uma empresa jornalística, alguém retratado deve buscar, junto ao veículo de comunicação, seu direito de resposta. E se isso for insuficiente, procurar na Justiça a reparação.

Contudo, o que vemos em abundância são ataques traduzidos na invasão da vida privada dos profissionais, distorcendo fatos, expondo dados pessoais, ameaçando seus filhos e pais. Por vezes, essa violência transborda a rede e vai para a rua, para o restaurante, para a porta da casa. Não raro, transforma-se em socos, pontapés, pedradas, cusparadas, empurrões. A perseguição é sempre mais violenta quando o alvo são mulheres (quando o ataque também ganha cunho sexual), além de negros e da população LGBTTQ.

O processo de ataque aos jornalistas se assemelha à tortura – instrumento de trabalho do açougueiro Brilhante Ustra, assassino da ditadura militar, apontado como herói pelo presidente Jair Bolsonaro. Não é usado para que o jornalista em questão seja punido pelo que supostamente fez, mas para que, traumatizado, nunca mais tenha coragem de fazer novamente.

Nesse sentido, o presidente da República tem sido um exemplo para os inconsequentes que atacam jornalistas. Em um momento, se vale de uma notícia claramente falsa para atacar uma repórter do jornal O Estado de S.Paulo. Em outro, comete assédio contra uma da Folha de S.Paulo durante uma entrevista. Na esteira disso, milhares de seguidores em fúria acusam, condenam e promovem um linchamento punitivo nas redes.

Pelas declarações de Glenn Greenwald e de sua equipe, isso não vai mudar o curso da investigação. Afirmam ter recebido uma grande quantidade de informação de uma fonte anônima e muita coisa ainda deve ser divulgada. O que não significa que não estão tomando cuidado. Ser jornalista no Brasil pode ser mais perigoso do que cobrir guerras.

Fui convidado para falar em uma audiência pública na Câmara dos Deputados, no dia 4 de junho, sobre a violência contra jornalistas e comunicadores, que vem crescendo em todo o país, e o que isso significa para a democracia. Organizada pelas Comissões de Direitos Humanos e Minorias e pela Comissão de Cultura, contou com a participação da Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão, do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos e da ONG Artigo 19, além de parlamentares. 

Lembrou-se que o respeito à integridade dos jornalistas, sejam eles de veículos tradicionais ou alternativos, mídia grande ou pequena, liberal ou conservadora, segue sendo um dos pilares da democracia.

O Brasil já é um dos países mais violentos para jornalistas e comunicadores, com pessoas assassinadas no exercício da profissão. Além de acabar com a impunidade de quem incita e quem comete violência, ação a ser tomada pelo Estado, é fundamental reduzir a ultrapolarização do debate público – que vem normalizando ataques a quem divulga algo diferente do que um grupo ideológico quer ouvir, seja à esquerda, seja à direita. Casos como o de Glenn Greenwald deveriam ser acompanhados de perto pelo Congresso Nacional, pelo Ministério Público Federal e pelo Conselho Nacional de Justiça.

Cabe à sociedade decidir se quer uma imprensa livre, mesmo que discorde dela, e sair em sua defesa. Ou se está satisfeita com a proposta colocada à mesa nas eleição de 2018: substituir a pluralidade e o contraditório por mensagens falsas postadas em grupos de WhatsApp que confirmam uma limitada visão de mundo.

 

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.