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Leonardo Sakamoto

Pesquisa sobre 900 mil comentários faz retrato do conservadorismo no Brasil

Leonardo Sakamoto

29/06/2019 19h36

Por Celina Lerner*, especial para o blog

Preciso confessar que, anos atrás, vinha ao blog do Leonardo Sakamoto só para ler os comentários. Não sei se vocês também faziam isso, mas eu rolava a página até a parte de baixo e passava um bom tempo vasculhando aqueles textos curtos: alguns parabenizando o jornalista, outros complementando alguma informação e muitos expressando revolta, discordando veementemente e distribuindo xingamentos em caixa alta e com palavras que eu não via desde a quinta série. A coisa era tão repetitiva e curiosa que imaginei que pudesse haver algum padrão nesses discursos, uma mesma forma enfrentamento da palavra escrita, uma mesma visão sobre o autor da postagem ou algum sentimento escondido associado a algo muito ruim.

Daí surgiu a ideia que se transformou na tese de doutorado "A Mentalidade Conservadora no Brasil: uma análise da interação política em redes sociais digitais (2012-2018)", que defendi na Universidade Federal do ABC. Enquanto a tese nascia, o negócio cresceu tanto que o espaço para comentários deste blog precisou ser fechado. As expressões conservadoras (e mal educadas) engoliram os debates nas mídias sociais, tomaram as ruas em pequenos atos ofensivos ou em grandes manifestações e chegaram até o Congresso e a Presidência da República por vias eleitorais.

Explico aqui rapidamente as etapas de minha pesquisa empírica de análise de big social data. Comecei a busca pelo entendimento da visão de mundo conservadora mapeando uma rede de mais de 9 mil páginas no Facebook. A rede de curtidas de páginas mostrou que os atores ligados ao conservadorismo distribuem-se entre a esfera religiosa (cristã) e a esfera política (de direita).

A comunidade Conservadora Política, a maior da rede, reúne páginas anti-feminismo; anti-ateísmo; de defesa do liberalismo econômico; páginas de fãs das Forças Armadas; de militantes pela facilitação do porte de armas; páginas de políticos; de jornalistas; de celebridades midiáticas; de ativistas de internet; de novos movimentos sociais e outros. A força que uniu esses diferentes atores nessa grande rede foi a oposição a tudo que possa ser relacionado à esquerda.

Figura: Diferentes vieses distribuídos pela Comunidade Conservadora Política da Rede de Curtida de Páginas

Procurando dar conta desse amplo espectro encontrado, selecionei sete páginas e coletei os comentários feitos entre 2012 e 2018, num total de mais de 900 mil comentários.

Mas como ler quase um milhão de comentários?! Aí que entra a mágica. Tratando texto como dados, desenvolvi e apliquei um modelo matemático que transforma esses grandes conjuntos de textos em redes de palavras. Pela análise dessas redes, identifiquei os principais valores compartilhados e delineei uma esquematização da mentalidade conservadora.

Em resumo: o grande tema que perpassa os comentários analisados é o Brasil, ora atrelado a um elemento humano consolidado: povo; e ora referindo-se a um elemento de ordenação ou governo dessa entidade nacional, configurada como: país.

Há um reconhecimento coletivo e evidente, porém não especificado, de que algo de muito errado se passa no país, um problema grave e urgente, identificado com a esquerda, o PT, os partidos, o desvio de dinheiro público e a corrupção.

Além da desordem já instaurada, há também uma ideia persistente de que a situação pode piorar ainda mais, pois um fantasma ronda o Brasil: o fantasma do comunismo. O léxico anti-comunista está em todas as redes: direita, esquerda, comunismo, comunista, socialista, socialismo, Venezuela, Cuba, Rússia, vermelha, Stalin, Lênin, ideologia e Foro de São Paulo são palavras e termo frequentes e distribuídos entre vários contextos.

É evidente a prevalência das ocorrências variadas sobre a esquerda, inclusive com neologismos ou derivações como esquerdopatas, esquerdistas e esquerdismos. O discurso conservador pouco fala de si mesmo. A expressão dessa cosmovisão se dá a partir do discurso sobre o outro, nesse caso, o outro como entidade ameaçadora da ordem política nacional.

Minha análise, assim como o conservadorismo, extrapola a esfera política, mas infelizmente não tenho espaço aqui para aprofundá-la. Em linhas gerais, a mentalidade que emergiu dos comentários tem Brasil, Deus e homem – a quem se ligam mulher e crianças – como elementos centrais e positivos. Fora desse núcleo está tudo que se diferencia dele e, portanto, o ameaça – comunistas, petistas, esquerdistas, vagabundos, corruptos, feministas e gays. Cabe ao homem, à nação ou a Deus a defesa – por meio da força – dos elementos positivos contra as ameaças.

Quando Leonardo Sakamoto escrevia que o que falta ao Brasil é interpretação de texto, ele estava certo. O que o jornalista ou qualquer defensor dos direitos humanos escreve é entendido por pessoas que compartilham da mentalidade conservadora a partir de sentidos completamente diferentes do original. E quando ele respondia aos comentários raivosos dizendo que os comentaristas precisavam é de um abraço, ele estava mais certo ainda. No cerne dessa braveza toda, há uma profunda sensação de vulnerabilidade que leva essas pessoas a buscarem a violência como forma de proteção.

Mas xingamentos na internet, desavenças em família, socos, pontapés, tiros, guerras, violência contra a mulher, exploração de trabalho escravo, acumulação desenfreada de capital, imposição de valores ou extermínio dos diferentes são ações que não vão nunca abrandar essa sensação de vulnerabilidade como faria um bom abraço de mãe.

(*) Celina Lerner é jornalista, socióloga e doutora em Ciências Humanas e Sociais pela Universidade Federal do ABC.

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.