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Leonardo Sakamoto

Por algumas horas, Bolsonaro conseguiu ser mais Bolsonaro do que nunca

Leonardo Sakamoto

20/07/2019 15h01

Foto: Miguel Schincariol/AFP

Bolsonaro defendeu o nepotismo, disse que a fome no Brasil era "grande mentira", atacou o Nordeste, difamou jornalista, afirmou que dados de satélite mentem sobre o desmatamento, tratou de censura à Ancine, tudo isso entre a noite de quinta (18) e a sexta. Se o objetivo do presidente da República era estar presente na mídia por conta da recém-criada celebração de 200 dias de governo, conseguiu. Menos pela medidas que prometeu para a economia (o anúncio sobre o novo saque do FGTS foi adiado após revolta das construtoras) e mais pela desenvoltura de sua metralhadora verbal – que deixou a civilidade, a ética e os fatos mortos no caminho.

Não é uma questão meramente ideológica. Bolsonaro mostrou mais uma vez que não conta com a qualificação necessária para ocupar o cargo, não tem coragem de assumir o que diz e, pior, desconhece a realidade do país que governa. Para seus fiéis seguidores, que abraçam com prazer o conteúdo distópico de seus discursos ou que não se importam com incompetência desde que ela não tenha brotado do PT, está tudo bem. Já para uma parcela da direita, do centro e da esquerda, presenciar um presidente pulando para fora da política e abraçando a barbárie é uma cena desconcertante.

A verdade é que, durante 24 horas, Bolsonaro foi mais Bolsonaro que nunca.

Filhocracia

Em sua live semanal no Facebook, às 19h desta quinta (18), mostrou que, para ele, a meritocracia é sim hereditária ao defender mais uma vez a indicação de seu filho, o deputado federal Eduardo Bolsonaro, ao cargo de embaixador nos Estados Unidos. Mas, desta vez, de forma explícita.

"Lógico, que é filho meu, pretendo beneficiar filho meu, sim. Pretendo, se puder, dar filé mignon. Eu dou, mas não tem nada a ver com filé mignon, nada a ver, é realmente, nós aprofundarmos um relacionamento com um país que é a maior potência econômica e militar do mundo." Uma declaração do tipo "O Estado sou eu", atribuída ao absolutista rei francês Luís 14 – mas sem a mesma elegância.

O presidente afirmou que isso não configuraria nepotismo, mas também repetiu que "se quiser" manda o ministro Ernesto Araújo para ser embaixador em Washington DC e bota seu filho no lugar dele, como chanceler no Itamaraty. E mostrando seu apreço pela democracia, afirmou em perfeito bolsonarês: "Quem diz que não vai votar mais em mim, paciência. É igual aquele maridão malandro. Está lá, felicíssimo com a mulher seis meses depois do casamento. Em um dia lá, a mulher queima o ovo dele. Ovo na frigideira, pra deixar bem claro [risos]. Aí pronto, já quer acabar com o casamento. Não tem cabimento isso aí. Vai ter coisas que eu vou desagradar vocês".

"Governadores de Paraíba"

Outra fala em que Bolsonaro confundiu o público e o privado, com uma boa dose de preconceito, ocorreu algumas horas depois, já na sexta, pouco antes de um café da manhã com correspondentes internacionais. Um microfone captou um áudio de sua conversa privada com o ministro-chefe da Casa Civil, Onyx Lorenzoni. Nela, é possível ouvir que o presidente usar a expressão "governadores de Paraíba", referindo-se aos da região Nordeste. Depois diz que o pior é o do Maranhão e sentencia: "não tem que ter nada para esse cara". Os governadores da região divulgaram uma carta lamentando as declarações e cobrando explicações.

"Parece chamar todos os nordestinos de 'Paraíba' e me ameaça, com estranha raiva", postou o governador do Maranhão, Flávio Dino. "Independente de suas opiniões pessoais, o presidente da República não pode determinar perseguição contra um ente da Federação." O Nordeste entregou a Bolsonaro a pior votação e, hoje, joga para cima sua rejeição nas pesquisas. Caso fosse um ator político que operasse na base do pragmatismo e da lógica, e não do ressentimento e da vingança, colocaria a região como prioridade em políticas e discursos. Preferiu, reforçar o preconceito regional – crítica mais do que justa contra nosso comportamento do Sul-Sudeste diante do Nordeste.

Fome, sua mentirosa

Durante o café da manhã, respondendo a uma questão dos jornalistas, afirmou que "falar que se passa fome no Brasil é uma grande mentira". Nadando ferozmente contra a correnteza da realidade, continuou: "Passa-se mal, não come bem. Aí, eu concordo. Agora, passar fome, não." Para o IBF (Indicador Bolsonariano de Fome), a situação provavelmente só se configura quando as costelas ficam à mostra. "Você não vê gente mesmo pobre pelas ruas com físico esquelético como a gente vê em alguns outros países pelo mundo."

Há insegurança alimentar nas grandes cidades. Mas se o presidente visitasse o interior do Nordeste, por exemplo, ao invés de menosprezar a região, veria que, em cidades com baixo IDH (Índice de Desenvolvimento Humano), há inclusive o "físico esquelético" do qual falou.

Mais tarde, Bolsonaro se corrigiu. "É um país aqui que a gente não sabe por que uma pequena parte passa fome e outros passam mal ainda". E disse que isso "é inaceitável em um país rico como o nosso, com terras agricultáveis, água em abundância".

É triste para um presidente da República não saber as causas da fome. A recessão econômica e a concentração de riqueza dificultam que uma camada da população saia da pobreza extrema. Entrevistei lideranças Guarani Kaiowá, nesta sexta, que disseram que crianças indígenas ainda vão para cama com fome e uma das razões é a falta de terra para que possam produzir para sua própria sobrevivência. Terras que o presidente da República já disse que não vai demarcar.

A situação da fome melhorou devido a políticas como a aposentadoria rural e do BPC (que, aliás, Bolsonaro tentou reduzir na Reforma da Previdência) e programas de transferência de renda, como o Bolsa Família, mas estamos longe de resolver o problema. A ONU apontava que o Brasil contava com 5,2 milhões de pessoas que passavam fome entre 2015 e 2017. Além disso, há programas governamentais de alívio que não alcançam essa população ou são insuficientes.

Tortura em Miriam Leitão

Para fechar com ignorância e desinformação o café da manhã, ele ainda passou pano para a ditadura militar e atacou uma jornalista. Questionado sobre o fato de Miriam Leitão e de seu marido, o sociólogo Sérgio Abranches, terem sido desconvidados de uma feira do livro em Jaraguá do Sul (SC) após pressão de grupos de extrema direita, Bolsonaro disse que ela precisa aprender a receber críticas como ele aprendeu (sic) e, gratuitamente, passou a dizer que ela integrava a luta armada durante a ditadura militar, tendo mentido sobre o fato de ter sido torturada.

"Ela estava indo para a Guerrilha do Araguaia quando foi presa em Vitória. E depois conta um drama todo, mentiroso, que teria sido torturada, sofreu abuso etc. Mentira. Mentira."

Miriam integrava ações de comunicação durante a ditadura, o que incluía distribuição de panfletos, mas nunca fez parte da Guerrilha do Araguaia, tampouco pegou em armas. Acabou presa e foi torturada mesmo grávida pelo regime para o qual Bolsonaro tanto passa pano. Acabou absolvida das acusações em julgamento ainda durante a ditadura, em 1973.

A fome é mentira porque Bolsonaro desconhece a realidade. Quando confrontado com o ridículo disso, a mentira torna-se o fato dele ter dito que a fome era mentira, o que, claro, é culpa de jornalistas que querem confundi-lo. Como o relato de uma jovem grávida torturada de forma covarde no 38º Batalhão de Infantaria do Exército, no Espírito Santo, não cabe na narrativa de uma ditadura boazinha e respeitadora dos direitos que ele tenta estabelecer, então a tortura não aconteceu. Apesar das evidências, Bolsonaro culpa a vítima.

Desmatamento 

O presidente repetiu esse mesmo modus operandi algumas horas depois, em um evento no Ministério da Cidadania, ao afirmar que iria conversar com o diretor do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais porque ele acredita que as informações sobre desmatamento divulgados pelo instituto não condizem com a verdade que ele abraça e prejudicam o nome do país no exterior. Dados premilinares de satélites (ou seja, fo-to-gra-fi-as) mostram 1 mil km² de floresta derrubada na Amazônia na primeira quinzena de julho, um aumento de 68% em relação ao mesmo período no ano passado.

"Vou conversar com qualquer um que esteja a par daquele comando, onde haja a coisa publicada, que não confere com a realidade, vai ser chamado para se explicar. Isso é rotina, toda semana, todo dia, acontece isso aí." No café da manhã com os correspondentes, eles já havia duvidado dos dados de aumento no desmatamento, dizendo que "com toda a devastação de que vocês nos acusam de estar fazendo e ter feito no passado, a Amazônia já teria se extinguido". E levantou a suspeita do presidente do INPE, Ricardo Galvão, estar "a serviço de alguma ONG".

Isso significa que se dados científicos não cabem na "verdade" do presidente, os dados científicos são mentirosos. Mais terraplanista do que isso, impossível.

Este é um governo que vê erro na metodologia do cálculo de desemprego do IBGE, como afirmou o próprio Bolsonaro. E que acha que as taxas de desmatamento da Amazônia são artificialmente infladas, como havia opinado o general Augusto Heleno; não confia em pesquisas da Fundação Oswaldo Cruz, um das mais importantes do mundo, por elas não confirmarem sua visão das coisas, como o ministro Osmar Terra; afirma que a temperatura global aumentou porque estações de medição ficavam no "mato" e hoje ficam no "asfalto", como explicou o chanceler Ernesto Araújo; e menospreza a importância do Censo, como fez o ministro Paulo Guedes.

Censura na Ancine

No mesmo evento, Bolsonaro voltou a falar da Ancine (Agência Nacional do Cinema). Ele tem criticado a instituição pública não pela necessidade de democratizar o acesso a recursos, mas pelo conteúdo das produções aprovadas. Ou seja, não é uma questão de aprimorar a agência, mas de censurá-la à sua imagem e semelhança.

"Vem para Brasília e vai ter um filtro sim, já que é um órgão federal. Se não puder ter filtro, nós extinguiremos a Ancine. Privatizaremos ou extinguiremos. Não pode dinheiro público ser usado para fins pornográficos", disse. E voltou a reclamar do filme protagonizado pela atriz Deborah Secco, o que ele já havia feito no dia anterior: "Não posso admitir que, com dinheiro público, se façam filmes como o da Bruna Surfistinha".

Note-se o "se não puder ter filtro" e o "não posso admitir" com relação à escolha do conteúdo a ser apoiado, bem ao estilo absolutista do Rei Sol. Bolsonaro sugeriu que a Ancine apoiasse filmes sobre os "heróis" do país. Ganha um doce quem também pensou que ele tinha Duque de Caxias e não Zumbi dos Palmares ou Dandara em mente quando disso isso.

"Eu sou o caminho, a verdade e a vida"

Bolsonaro acredita que foi eleito para empreender uma Cruzada, no significado medieval da palavra. Quer libertar o país tanto de um comunismo inexistente quanto de comportamentos e costumes progressistas – que, em sua opinião, são a origem do mal. Mas também tenta reescrever a História sob seu ponto de vista, defendendo que o nazismo era de esquerda ou que não houve ditadura militar. Isso não é só cortina de fumaça com objetivos políticos ou exagero para manter seguidores excitados e prontos para a batalha virtual. Bolsonaro realmente acredita nisso por mais ridículo que pareça. Alimentado por paranoias e teorias da conspiração, muitas de suas ações seguem pelo caminho iluminado pela filosofia superficial do polemista e astrólogo Olavo de Carvalho.

Bem como nos 100 primeiros dias, estes 200 também serviram para provar que, confirmando as expectativas, Jair Bolsonaro é a pessoa mais despreparada a assumir o comando do Poder Executivo em muito, muito tempo. E olha que a concorrência é dura. Se ele contasse com um projeto de país, esse despreparo o inviabilizaria. Mas como o objetivo passa por desconstruir o que está aí, ele ainda tem chances de realizar seu objetivo com sucesso.

Como já disse aqui no dia 26 de março, ele não age como presidente, mas como se comandasse o "Ministério da Verdade" – apresentado no romance "1984", de George Orwell, com a função de ressignificar os registros históricos e qualquer notícia que seja contrária ao próprio governo. Para tanto, sua máquina de guerra nas redes sociais e nos aplicativos de mensagens, fundamental para sua eleição, continua ligada e é usada para atacar violentamente a imprensa, cientistas, professores, o Congresso Nacional, o Supremo Tribunal Federal e qualquer um que o critique ao invés de dizer amém.

Como escreveu o criador do Big Brother (o do livro "1984", não o reality): "quem controla o passado, controla o futuro; quem controla o presente, controla o passado". Reescrever o passado pela tinta do presente incluiu, nesses 200 dias, ordenar até o retorno da celebração oficial em batalhões e quartéis da deposição de um presidente e da implementação de um regime que matou, torturou, estuprou, cassou, roubou (e muito), perseguiu e sumiu com pessoas, negando a democracia ao país por 21 anos.

O "Ministério da Verdade", de Bolsonaro, inclui castrar a liberdade de ensino conquistada desde a redemocratização, com uma intervenções no significado e no sentido da educação pública. Ordenar a leitura de slogan de campanha eleitoral nas escolas, demandando que crianças fossem gravadas enquanto cantassem o hino nacional e seus vídeos enviados a Brasília – tudo sem autorização dos pais – foi a parte pastelão de um processo maior, em curso. Inclui também apontar muitas das liberdades conquistadas desde a Constituição de 1988 e dizer que a sociedade está corrompida e degradada por conta delas, precisando de refundação. E, claro, que "os direitos trabalhistas", como o FGTS, são privilégios que produzem a crise econômica.

Enquanto isso, no hemisfério Norte, Donald Trump sugeria, de forma racista, que quatro congressistas não brancas "voltassem" para seus "lugares totalmente falidos e infestados de crime de onde vieram". O que se tornou um grito de guerra de seus seguidores, já mirando a reeleição de 2020. "Mande-as de volta", pediam eles, alucinados. Tal qual o "Brasil: ame-o ou deixe-o", que está voltando à moda por aqui.

Na terça (16), o ministro Dias Toffoli, do STF, atendeu a um pedido de seu filho, o senador Flávio Bolsonaro, e suspendeu investigações sobre as movimentações atípicas dele e de seu ex-assessor Fabrício Queiroz. Isso beneficiou outros casos, da corrupção ao narcotráfico. Na quarta (17), o Ministério da Educação lançou um plano para ampliar recursos privados às universidades federais no futuro, mas nada disse sobre a falta de água, luz e papel higiênico de hoje devido ao corte do orçamento. Os impropérios de quinta e sexta, mais do que cortinas de fumaça para uma semana intensa, são uma mostra de um governo que ataca direitos em várias frentes e simultaneamente.

Bolsonaro tem demonstrado acreditar que sua palavra é o que dá significado ao mundo e as coisas são o que ele diz que são, características de governantes autoritários. Bolsonaro afirma gostar da passagem bíblica do "Conhecereis a verdade e ela vos libertará" (João 8:32), mas parece, de fato, se identificar com "Eu sou o caminho, a verdade e a vida" (João 14:6).

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.