Topo

Leonardo Sakamoto

Bolsonaro parece governar um quartel, não um país, ao falar de desmatamento

Leonardo Sakamoto

23/07/2019 13h42

Foto: José Cruz/Agência Brasil

Ao exigir que dados sobre desmatamento sejam enviados à cúpula do governo federal antes de serem divulgados, o presidente Jair Bolsonaro bate de frente com princípios da República e demonstra não compreender que o cargo que ocupa pode muita coisa, mas não pode tudo.

Após ter chamado os dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE) que indicaram aumento na taxa de desmatamento da Amazônia de mentirosos e ser criticado pelo presidente da instituição e por entidades que congregam cientistas, ele mudou o tom.

Reclamou que precisa receber os dados com antecedência para não ser "pego de calças curtas", temendo o impacto em negociações internacionais que levam em consideração a questão ambiental. Disse que estava acostumado com "hierarquia e disciplina" e cobrou que seus ministros fossem comunicados com antecedência. "É a mesma coisa que um sargento e um cabo passar para frente uma notícia sem passar pelo capitão, coronel, brigadeiro, não está certo isso daí", disse.

O presidente Jair Bolsonaro administra um país, não um quartel, mas talvez não tenha se dado conta disso ainda. Pois a pretensa "hierarquia e disciplina" por ele exigida bate de frente com os princípio da gestão pública. E, além do mais, esses dados não são feitos para ele, mas devem nascer públicos.

O porta-voz da Presidência da República, general Rêgo Barros, apressou-se em dizer que "não há intenção de ferir a transparência". Contudo, não é isso o que o governo demonstra.

Alegar desconfiança dos dados organizados e divulgados de forma periódica e transparente por uma instituição de renome internacional como o INPE e, depois, exigir que eles subam para a cúpula ministerial antes de virem a público é fazer com que a divulgação perca o caráter técnico e ganhe uma instância política. Mesmo que não houver interferência direta no conteúdo, o processo já não terá mais a mesma independência.

Os dados produzidos e divulgados pelo INPE não existem para proteger negociações comerciais do país (e, a propósito, eventuais problemas que podemos ter nessa área são consequência de nossa incompetência e falta de interesse em garantir desenvolvimento sustentável). Mas servem para informar ao país sobre a situação da redução da cobertura florestal a fim de orientar ações públicas e privadas.

Por conta disso, já foram atacados em governos anteriores, mas também defendidos pela sociedade – que tem o direito de saber o real estado das coisas sem o risco de que a divulgação seja atrasada ou maquiada para atender a interesses políticos.

"No âmbito da administração pública federal, há controles do que um presidente pode e não pode fazer. A própria burocracia, escolhida por concurso público, como o corpo técnico de um instituto de pesquisa, já é um obstáculo para que ele não faça o que bem entender", explicou ao blog Eloísa Machado de Almeida, professora da FGV Direito SP e coordenadora do centro de pesquisas Supremo em Pauta.

De acordo com ela, o Poder Executivo deve seguir os princípios da administração pública, relacionados no artigo 37 da Constituição Federal. Entre eles, a impessoalidade e a publicidade. Ou seja, a divulgação de dados não pode depender da vontade ou do humor do governante.

"O presidente ocupa legitimamente a chefia do Poder Executivo para implementar o que está nas leis e na Constituição e para não exercer sua vontade pessoal", afirma a professora da FGV Direito SP. "Ele deve entender essa básica divisão entre a coisa pública e a coisa privada. Não é porque foi eleito que pode implementar sua vontade em tudo."

Desemprego e desmatamento

Bolsonaro tem demonstrado também insatisfação com a metodologia de cálculo de desemprego da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) Contínua, divulgada mensalmente pelo IBGE, que hoje aponta 12,9 milhões de pessoas que procuram trabalho, mas não encontram.

Chamou- a de "farsa", "coisa que não mede a realidade", "índices feitos para enganar a população". Mesmo sob ataque, o IBGE continua divulgando as estimativas no final de cada mês.

Em nota em seu site, o INPE explica como funciona seus três sistemas de monitoramento de desmatamento e sua divulgação. Alvo da ira presidencial, desde 2004, o Deter produz alertas diários de alteração na cobertura vegetal de áreas maiores que três hectares – que são enviados automaticamente ao Ibama. Os dados ficam disponíveis no site da instituição para toda a sociedade e, mensalmente, é divulgado um boletim com a situação do mês anterior. O Prodes realiza, desde 1988, um inventário de perda de floresta e é feito anualmente considerando áreas de desmatamento superiores a 6,25 hectares. Por fim, o TerraClass identifica, a cada dois anos, qual o uso das áreas desmatadas.

Melhor faria se o governo apoiasse a fiscalização ambiental e garantisse punição aos infratores, atuando também na prevenção e na responsabilização de cadeias de valor, ao invés de atacar o termômetro. O problema é que, se fizer isso, baterá de frente com ala anacrônica dos ruralistas, um dos pilares de sustentação de seu governo.

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.