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Leonardo Sakamoto

Proposta de Bolsonaro trará censura e perda de empregos ao cinema nacional

Leonardo Sakamoto

26/07/2019 18h57

Em live, Bolsonaro diz que vai "buscar a extinção da Ancine". Foto: Marcos Corrêa/PR

Por Gustavo Gindre*, especial para o blog

O presidente Jair Bolsonaro parece ter iniciado uma cruzada contra a Agência Nacional de Cinema (Ancine). E uma cruzada bem ao seu estilo, mostrando desconhecimento sobre o que faz a Ancine e defendendo censura de caráter moral.

Em sua live semanal no Facebook, nesta quinta (25), Bolsonaro afirmou que seu governo vai "buscar a extinção da Ancine, pois não tem nada que o poder público se meter em fazer filme". Ao mesmo tempo, afirmou que já transferiu, por decreto a sede da instituição do Rio para Brasília. "Vai ficar em Brasília aqui, vamos ficar de olho no pessoal." As declarações são apenas o capítulo mais recente de uma série de ataques do presidente da República.

Primeiro, ele havia afirmado que o Estado não deve fazer filmes. Mas o Estado não faz filme algum. A Ancine fomenta a produção audiovisual que é realizada por empresas privadas. Fomento público ao audiovisual é algo absolutamente comum e praticado por países como França, Alemanha, Espanha, Inglaterra, Argentina e… quem diria, os Estados Unidos. Aliás, a Convenção sobre a Proteção e Promoção da Diversidade das Expressões Culturais, da Unesco, da qual o Brasil é signatário, afirma que os Estados têm obrigação de apoiar e fomentar a cultura nacional, primando pela diversidade (étnica, de gênero, regional etc).

Não há aqui nenhum tipo de artimanha comunista como sonham os mais ferrenhos eleitores de Bolsonaro. Vale lembrar que a Lei do Audiovisual, que criou o atual modelo de renúncia fiscal, começou a ser discutida no governo Collor e foi aprovada na gestão Itamar, com o apoio do então PFL, atual DEM.

Depois, Bolsonaro insinuou que a Ancine estaria escolhendo quais filmes ela financia. Mas na prática não é isso que ocorre. Ao contrário do presidente, sugiro que tentemos entender como as coisas funcionam antes de sairmos por aí falando bobagens. Existem dois tipos de fomento ao audiovisual: renúncia fiscal e Fundo Setorial do Audiovisual (FSA).

Na renúncia fiscal, a empresa que deseja produzir um filme ou uma série deve buscar um empresário que tenha imposto a pagar e que queira utilizar parte desse imposto na produção da obra audiovisual. Uma vez obtido o apoio deste empresário, a empresa produtora se dirige à Ancine que então verifica se ela cumpre o que determina a lei. Por exemplo, a empresa tem que ser de propriedade de brasileiros e não pode ter qualquer relação acionária com operadoras de telecomunicações ou emissoras de TV. A Ancine não analisa o assunto a que se refere o filme. Quem faz essa seleção é o próprio mercado. A Ancine apenas atesta que a empresa produtora cumpre a lei. E o dinheiro é liberado. Ao final, a Ancine analisa a prestação de contas para saber como o dinheiro foi gasto.

E há o caso do FSA, cujo dinheiro provêm, em grande parte, de uma taxa paga pelas operadoras de telecomunicações. O FSA é dividido em diversas linhas de fomento (longas metragens, documentários, animação etc) e sua política é definida pelo Conselho Superior do Cinema (CSC), que possui representantes do governo federal e da sociedade civil. O processo de seleção das obras que receberão recursos do FSA conta com a análise de pareceristas externos, sem ligação com a Ancine. Novamente, não há aqui nenhuma forma de censura prévia.

Por fim, Bolsonaro afirmou que deseja a Ancine ao seu lado para poder ser controlada. Ora, isso sim é praticar censura. O presidente da República não tem que ficar se metendo na escolha de quais filmes serão financiados porque obviamente ele vai escolher apenas aqueles que estão de acordo com sua visão política. Bolsonaro acha que não se deve fomentar filmes como "Bruna Surfistinha" (que ele assume não ter visto e por isso acha que se trata de obra pornográfica). Mas, o filme teve a segunda maior bilheteria nacional do ano de seu lançamento e a série de TV derivada é sucesso comercial no Brasil e em outros países da América Latina. Ou seja, muita gente que paga impostos gostou de assistir ao filme e à série que receberam recursos dos impostos de brasileiros.

O dinheiro público investido no audiovisual serve para estimular a produção da cultura nacional (evitando que consumamos apenas filmes norte-americanos) e gera empregos no Brasil. São roteiristas, diretores, câmeras, editores e uma infinidade de outros serviços necessários para produzir um filme ou uma série. Acabar com o fomento público justamente no momento em que o país vive uma forte crise econômica é aumentar o desemprego e a recessão.

Mudanças

Tudo o que eu disse acima não significa que se deva fazer uma defesa absoluta da Ancine e do modelo de fomento ao audiovisual no Brasil. Muito pelo contrário, há várias mudanças que deveriam ser feitas e que, infelizmente, os governos tucanos e petistas não tiveram a necessária coragem e interesse. O problema é que as mudanças sugeridas por Bolsonaro, no seu estilo histriônico e pouco fundamentado, não apenas não corrigem os problemas atuais como ainda criam novos, a exemplo do evidente risco de censura.

Por exemplo, a Ancine é uma agência reguladora que praticamente não tem atribuições regulatórias, ao contrário de agências semelhantes nos Estados Unidos, França, Inglaterra, Alemanha e Espanha, por exemplo. É fundamental que o Brasil tenha um órgão regulador capaz de coibir a ação dos oligopólios privados de comunicação. Evitar, por exemplo, a excessiva concentração empresarial em poucas mãos e estimular a diversidade de fontes de informação. Para isso, o Congresso Nacional deveria promover um amplo debate sobre a regulação das comunicações, inclusive aprendendo com a experiência de outros países.

E também é preciso promover mudanças no fomento. No que se refere à renúncia fiscal, são poucos empresários, em geral ligados aos meios de comunicação, que decidem onde o dinheiro público será utilizado. Se é verdade que temos que evitar a censura feita pelo Estado, também é muito ruim quando poucos empresários têm o poder de escolher onde será aplicado o dinheiro público de fomento ao audiovisual. Urge, portanto, criar mecanismos que permitam ampliar o poder da sociedade civil.

Quanto ao FSA ele precisa ser usado de forma mais assertiva. Por exemplo, é importante ter uma política específica de fomento aos produtores iniciantes, em particular às pequenas e micro-empresas. São essas as que mais precisam de recursos públicos. Também é necessário ter uma ação direcionada para estimular a produção audiovisual fora do eixo Rio – São Paulo, especialmente nas regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste.

Por fim, a Ancine tem um grave problema na sua prestação de contas, onde milhares de filmes e séries financiados com recursos públicos ainda esperam para serem analisados. Nada justifica que se passem tantos anos sem que a prestação de contas seja feita corretamente.

Enfim, há muita coisa para se fazer em um governo sério, que entenda do assunto e que não pretenda apenas estimular uma base fiel de eleitores cheios de preconceitos e vendo comunistas embaixo da cama. Se o governo Bolsonaro tivesse realmente intenção de mudar a Ancine para melhor haveria uma série de iniciativas a serem tomadas. Infelizmente, o governo parece ter escolhido o pior caminho possível, ao disseminar inverdades e deixar claro que pretende praticar censura prévia.

(*) Gustavo Gindre é jornalista, mestre em Comunicação e Cultura e doutorando em História das Ciências e das Técnicas e Epistemologia, ambos pela UFRJ, ex-conselheiro eleito do Comitê Gestor da Internet e servidor público concursado, especialista em regulação da atividade audiovisual, lotado na Ancine.

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.