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Leonardo Sakamoto

Com ataque a Glenn, Bolsonaro afasta farra do helicóptero das manchetes

Leonardo Sakamoto

28/07/2019 10h54

Foto: Adriano Machado/Reuters

Bolsonaro, em mais um dia de fúria, insinuou que o jornalista Glenn Greenwald poderia ser preso e afirmou que o responsável pelo The Intercept Brasil se casou com o hoje deputado federal David Miranda e, juntos, adotaram duas crianças brasileiras para evitar sua deportação por crimes futuros. O site vem divulgando diálogos que mostraram o ex-juiz Sérgio Moro, hoje ministro da Justiça, orientando procuradores da força tarefa da Lava Jato, o que é proibido por lei.

"Malandro, malandro, para evitar um problema desse [deportação de estrangeiros considerados perigosos], casa com outro malandro e adota criança no Brasil. Esse é o problema que nós temos. Ele não vai embora, pode ficar tranquilo. Talvez pegue uma cana aqui no Brasil, não vai pegar lá fora não", disse.

Não se sabe se essa era a intenção, mas a aberração dita pelo presidente teve o efeito colateral de afastar do foco do debate público e das manchetes dos principais veículos de comunicação o fato dele ter achado normal usar um helicóptero da Força Aérea Brasileira para transportar parentes e amigos para o casamento do filho, o deputado federal Eduardo Bolsonaro – o mesmo que está sendo indicado para o cargo de embaixador do Brasil nos Estados Unidos simplesmente por ser seu filho.

Após reagir de forma agressiva a uma repórter da Folha de S.Paulo que tratou do tema, na sexta, e abandonar a coletiva à imprensa, ele disse, no dia seguinte, que viaja sempre com dois helicópteros e não viu problemas em dar carona em um deles. "Eu vou negar o helicóptero a ir para lá e mandar ir de carro? Não gastei nada do que já ia gastar". Lembrando que não foi ele quem gastou, mas os cofres públicos. Repete dessa forma outros políticos tradicionais, da esquerda à direita, que usaram o transporte a quem têm direito como autoridades para interesses privados de terceiros.

Piada com questão ambiental diante de morte de cacique

Repetindo a "Sexta do Foda-se", o fatídico 19 de julho, quando falou dos "governadores de Paraíba", disse que não existe fome no Brasil, afirmou que a tortura sofrida pela jornalista Miriam Leitão era mentira e atestou que os dados do INPE de desmatamento da Amazônia são falsos, o presidente também disse, neste sábado (27), que a questão ambiental é importante "só a veganos que comem só vegetais". 

Escolheu um péssimo momento para menosprezar a questão. Pois outro grupo que certamente se preocupa com o tema são indígenas que estão sendo assassinados por invasores de olho nas riquezas de suas terras.

Neste mesmo sábado, o país tomou conhecimento das denúncias da etnia waiãpi de que o cacique Emyra Waiãpi foi assassinado por garimpeiros que invadiram o seu território no Oeste do Amapá nesta semana.

O presidente tem defendido a exploração de territórios indígenas, o que contribui para a sensação de impunidade por parte de garimpeiros e desmatadores. Em Roraima, os yanomami enfrentam o mesmo problema.

Políticos não são ingênuos, sabem o tamanho de sua caixa de ressonância, o fanatismo de alguns de seus seguidores, que agem como torcida organizada e o gigantismo de redes simpáticas a eles ou por eles controladas. E, ao ter consciência disso, tornam-se cúmplices das consequências dos atos desses grupos.

Políticos dizem não incitar a violência com suas palavras. Por vezes, não são eles que atacam, mas é a sobreposição de seus discursos ao longo do tempo que distorce o mundo e torna a agressão banal. Ou, melhor dizendo, "necessária" para tirar o país do caos e levá-lo à ordem. Acabam por alimentar a intolerância, que depois será consumida por fãs malucos ou seguidores inconsequentes que fazem o serviço sujo.

A declaração contra Glenn Greenwald e as promessas de abrir territórios indígenas e reservas ambientais para a exploração põe a violência em marcha.

Ataque frontal à liberdade de imprensa

O direito ao livre exercício de pensamento e à liberdade de expressão são garantidos pela Constituição Federal e pelos tratados internacionais que o país assinou. E o presidente tem esse direito. Mas liberdade de expressão não é direito fundamental absoluto, pois não há direitos absolutos. A partir do momento em que alguém abusa de sua liberdade, espalhando o ódio e incitando à violência, isso pode trazer graves consequências à vida de outras pessoas. Principalmente se esse alguém é o presidente da República.

Caso ache que foi profundamente agredido por conteúdos publicados por jornalistas (e ele deve ter o sarrafo mais alto que todas as outras pessoas exatamente pelo cargo que ocupa), deveria buscar junto ao veículo de comunicação, seu direito de resposta. E se isso for insuficiente, procurar na Justiça uma reparação. E não incentivar matilhas a assumirem o papel que seria de instituições democráticas.

O silêncio, neste momento, de algumas instituições do Estado que devem garantir a proteção à imprensa livre também assusta. O sentimento que fica é de que não se importam.

Os ataques a jornalistas não se resumem a enxurradas de críticas, o que faria parte do debate público. Invade a vida privada dos profissionais, distorcendo fatos, expondo dados pessoais, ameaçando famílias. Por vezes, transborda a rede e vai para a rua, para o restaurante, para a porta da casa. Esse processo de ataque a jornalistas se assemelha à tortura – instrumento de trabalho do açougueiro Brilhante Ustra, assassino da ditadura militar, apontado como herói por Bolsonaro. Não para que o profissional em questão seja apenas punido pelo que fez, mas para que, traumatizado, nunca mais tenha coragem de tratar do assunto novamente.

Caberá à sociedade decidir se quer uma imprensa livre, mesmo que discorde dela, e sair em sua defesa. Ou está satisfeita com a proposta colocada à mesa nas últimas eleições: substituir a pluralidade e o contraditório por uma "Verdade" distribuída por lives no Facebook ou em posts no Twitter pelo chefe do Poder Executivo. Tal qual um "Ministério da Verdade", presente no livro "1984" de George Orwell, atualizado para os nossos tempos e trópicos.

Jornalistas, não raro, são os primeiros a serem perseguidos e calados. Mas nunca são os únicos.

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.