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Leonardo Sakamoto

Bolsonaro critica lei antiescravidão que ajudou a aprovar como deputado

Leonardo Sakamoto

30/07/2019 20h29

Fiscalização resgata trabalhadores em situação análoga à de escravo no Pará. Foto: Leonardo Sakamoto

Jair Bolsonaro criticou, nesta terça (30), a emenda da Constituição Federal que prevê o confisco da propriedade rural ou urbana de quem utilizou trabalho escravo. Ironicamente, o presidente votou a favor dessa emenda em 2004, quando era deputado federal.

"De acordo com quem vai autuar ou não aquele possível erro da função do trabalho, a pessoa vai responder por trabalho escravo. E aí, se for condenado, dada a confusão que existe na Constituição no meu entender, o elemento perde sua propriedade", afirmou. "Esse cidadão vai perder a fazenda. Vão ele, netos e bisnetos para a rua, se não for para a cadeia. Quem tem coragem de investir num país como esse daqui?"

Em seu programa de governo, o então candidato Jair Bolsonaro propôs revogar a emenda constitucional 81/2014, que prevê o confisco de propriedades flagradas com esse tipo de mão de obra e sua destinação à reforma agrária e à habitação popular"Retirar da Constituição qualquer relativização da propriedade privada, como exemplo nas restrições da EC/81". Fazia parte do bloco de propostas para "reduzir os homicídios, roubos, estupros e outros crimes". A emenda é a principal legislação aprovada, nos últimos anos, para o combate ao trabalho escravo contemporâneo no país.

Ela não criou o confisco de propriedades sem indenização, apenas alterouo artigo 243 da Constituição Federal, que já tratava da expropriação de imóveis flagrados com cultivo de plantas psicotrópicas ilegais, acrescentando a questão dos trabalhadores escravizados. Ou seja, essa "relativização" foi prevista pela Assembleia Constituinte de 1988.

Bolsonaro, contudo, votou a favor dessa legislação que hoje critica, de acordo com o registro do primeiro turno, ocorrido em 11 de agosto de 2004. Ela corria na Câmara sob a alcunha de PEC 438/2001. Naquele dia, todos os partidos e bancadas recomendaram a aprovação da emenda e 326 deputados votaram a favor. Mesmo com a orientação, dez parlamentares se posicionaram contra e oito se abstiveram. A chamada PEC do Trabalho Escravo levaria oito anos para ser analisada e aprovada em segundo turno na Câmara, em 22 de maio de 2012. Foram 360 favoráveis, 29 contrários e 25 abstenções. Nessa data, o registro de votação não indica a presença do deputado no plenário.

A emenda veio a ser promulgada, em 2014, após dois turnos de votação no Senado Federal e 19 anos de trâmite desde que a proposta foi apresentada pela primeira vez no Congresso. Até agora, contudo, ela ainda não foi regulamentada devido à tentativa de parte da bancada ruralista de usa-la para inserir uma mudança na definição legal do que são condições análogas às de escravo. Com isso, apesar de aprovada, não é usada.

A regulamentação é importante porque vai estabelecer qual o devido processo legal para o perdimento das propriedades. Pelos debates realizados no Congresso, o mais provável é que comece após condenação judicial com trânsito em julgado e não afete quem alugava ou arrendava imóveis e não tinha conhecimento das atividades de seus inquilinos. Ou seja, não é a decisão da fiscalização, como diz o presidente, mas uma decisão judicial de última instância.

Confusão de Bolsonaro sobre "trabalho análogo ao de escravo" 

O presidente, sempre que se refere ao fenômeno da escravidão contemporânea, comete um equívoco. "Tem juristas que entendem que trabalho análogo à escravidão também é escravo", afirmou hoje, novamente.

"Trabalho análogo ao de escravo" ou "condição análoga à de escravo" nada mais é que a forma que nossa legislação se refere à escravidão contemporânea, à escravidão moderna, às formas contemporâneas de escravidão, ao trabalho escravo.

A Lei Áurea, em 13 de maio de 1888, aboliu a escravidão, o que significou que o Estado brasileiro não mais reconhecia que alguém fosse dono de outra pessoa. Persistiram, contudo, situações que transformam pessoas em instrumentos descartáveis de trabalho, negando a elas sua liberdade e dignidade. Desde a década de 40, nosso Código Penal prevê, em seu artigo 149, a punição a esse crime.

De acordo com ele, quatro elementos podem definir escravidão contemporânea por aqui: trabalho forçado (que envolve cerceamento do direito de ir e vir), servidão por dívida (um cativeiro atrelado a dívidas muitas vezes fraudulentas), condições degradantes (trabalho que nega a dignidade humana, colocando em risco a saúde e a vida) ou jornada exaustiva (levar ao trabalhador ao completo esgotamento dado à intensidade da exploração, também colocando em risco sua saúde e vida).

Jovem de 17 anos, libertado do trabalho escravo em fazenda no Pará, mostra mão machucada pelo agrotóxico e água que era oferecida para ele beber. Foto: Leonardo Sakamoto

Bolsonaro também repete em erro de Temer

"Vai que se pratica o trabalho análogo à escravidão que pode ser enquadrado pela OIT [Organização Internacional do Trabalho] pela espessura do colchão, o recinto com ventilação inadequada, roupa de cama rasgada, copo desbeiçado, entre outras quase 200 especificações", afirmou também Bolsonaro nesta terça. O presidente, dessa forma, incorre em um outro erro comum entre os críticos do sistema de enfrentamento a esse crime, acreditando que são irregularidades trabalhistas que configuram trabalho análogo ao de escravo.

Não é a primeira vez que ele faz isso. No dia 8 de outubro do ano passado, em entrevista à rádio Jovem Pan afirmou: "Eu fui estudar, são 180 itens. Por exemplo, na sua propriedade tem uma senhora de 30 anos, que está com máscaras, luva, roupa e bota, e está pulverizando uma plantação de alface para combater pulgão. Chega o Ministério Público do Trabalho, faz um teste de gravidez dela, e nem ela sabia que tava grávida. Vai que tá grávida? Então, em cima do ativismo judicial, [fazem um] processo para expropriar o imóvel. Isso não pode continuar acontecendo." Na época, Ulisses Dias de Carvalho, da Coordenadoria Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo do Ministério Público do Trabalho, explicou que, em nenhum lugar do mundo, essa condição por si só caracterizaria trabalho escravo.

Vamos tomar um caso que se tornou emblemático no Brasil como exemplo. No dia 20 de outubro de 2017, o então presidente Michel Temer divulgou quatro autos de infração de irregularidades banais afirmando que isso teria levado a auditores fiscais a considerarem um caso como "condições degradantes", um dos elementos que caracterizam trabalho análogo ao de escravo. "O ministro do Trabalho me trouxe aqui alguns autos de infração que me impressionaram. Um deles, por exemplo, diz que se você não tiver a saboneteira no lugar certo significa trabalho escravo", afirmou em entrevista ao jornalista Fernando Rodrigues, do portal Poder 360. Ele também mostrou autos relacionados a extintor mal sinalizado e beliche sem escada nem proteção lateral.

Contudo, o que Temer não informou é que haviam sido emitidos outros 40 autos de infração na mesma fiscalização, incluindo aqueles que tratavam de problemas graves como o não pagamento de salários, alojamentos superlotados e condições inadequadas de higiene. Ou que a fiscalização foi confirmada pela Justiça do Trabalho, que condenou o empregador. A fiscalização, que resultou no resgate de 63 trabalhadores, ocorreu entre março e abril de 2011, lavrando 44 autos de infração ao todo, e foi coordenada pelo então auditor fiscal João Batista Amâncio. "Encontramos alojamento que era um lixo, com gente dormindo no chão, sem colchão. Faltava higiene, condições sanitárias. Mas também encontramos trabalhador com carteira de trabalho retida, trabalhador que não recebeu salário algum."

De acordo com ele, durante uma fiscalização, os auditores são obrigados a lavrar autos de todas as irregularidades encontradas, das mais leves às mais graves, de acordo com uma lista de infrações estabelecida. Algumas autuações focam em detalhes tão banais que podem parecer um exagero. Porém, não é a falta de saboneteira ou de escada de beliche, a falta de copos plásticos ou a espessura de colchões, que configuram condições degradantes e, portanto, trabalho análogo ao de escravo, mas a somatória das autuações mais graves. A análise foi confirmada a este blog por Silvio Beltramelli, procurador do Ministério Público do Trabalho que esteve na operação. "Obviamente a caracterização de trabalho escravo não saiu só desses autos de infração." Para ele, "compreendidos isoladamente, certamente não caracterizam o trabalho escravo".

A sentença da juíza da 1a Vara do Trabalho de Americana, Natália Antoniassi, de agosto de 2013, afirmou que "lamentavelmente, a existência de trabalhadores em condição análoga à de escravo restou perfeitamente caracterizada". Ela também ressaltou outros elementos, como o aliciamento. Trazidos de "regiões miseráveis do Norte e Nordeste" com a promessa de que teriam a viagem custeada pela empresa e que ganhariam um bom salário, eles encontraram outra realidade ao chegar à cidade.

A declaração desastrosa de Temer, que foi exposta pela imprensa, ocorreu em meio à polêmica sobre uma portaria do então Ministério do Trabalho, publicada em outubro de 2017, que condicionava o flagrante de trabalho escravo ao cerceamento da liberdade com uso de vigilância armada, semelhante às propostas de alteração do conceito de trabalho escravo que tramitam no Congresso Nacional. Isso desconsiderava as condições de trabalho em que se encontravam as vítimas. Isso foi visto como uma das moedas de troca para a rejeição da segunda denúncia criminal contra Temer, encaminhada pela Procuradoria-Geral da República.

Proteção às exportações brasileiras

Bolsonaro também incentivou a mudança do conceito de trabalho escravo em seu discurso. "Quem sabe, parlamentares, uma definição clara até na própria Constituição do que é trabalho escravo? Botar na Constituição ou retirar e levar para lei complementar se faça necessário. Porque o Estado que estávamos construindo até há pouco tempo era o Estado totalitário, o Estado socialista e, pelas leis, nós estávamos cada vez mais nos aproximando do socialismo e do comunismo, onde o Estado mandava em tudo e em todos." A bancada ruralista vem tentando enfraquecer o conceito de trabalho escravo há anos, para dificultar o resgate de trabalhadores e a punição por esse crime. A fala de Bolsonaro vai nesse sentido.

Não raro, a fiscalização de casos de trabalho escravo e mais especificamente a "lista suja" do trabalho escravo (o cadastro público de empregadores flagrados por esse tipo de exploração) são chamados de "comunista" por seus críticos. O que é uma contradição em si, uma vez que, em última instância, a fiscalização significa garantir que o contrato de compra e venda de força de trabalho, base do capitalismo, seja feito corretamente.

Considerando que o mercado precisa de informação de qualidade circulando livremente para que investidores, financiadores e parceiros comerciais possam tomar decisões baseadas na realidade, há poucos instrumentos que contribuem para o bom desenvolvimento do capitalismo que a "lista suja" – que vem sendo publicada semestralmente pelo governo brasileiro. Afinal, fornece subsídios para que se realize gerenciamento de riscos. Ela vem protegendo as exportações de setores estratégicos da economia brasileira, como a produção de soja e de ferro gusa, uma vez que possibilita que compradores externos atuem de forma pontual junto a quem se utilizou desse expediente. Evita, assim, barreiras tarifárias e não-tarifárias sobre setores inteiros – o que só atrapalharia os empregadores que agem dentro da lei e beneficiaria grupos protecionistas fora do país.

"Quem tem coragem de investir num país como esse daqui?", pergunta o presidente Bolsonaro. Mas é justamente em um pais que relativiza e afrouxa o conceito de trabalho escravo que o risco de se investir aumenta. Principalmente num cenário em que busca-se a validação de um acordo de peso, como aquele entre o Mercosul e a União Europeia, e de um pedido de entrada na OCDE – ambos ambientes bastante rigorosos com relação aos padrões trabalhistas.

O Brasil foi um dos primeiros países a reconhecer, diante das Nações Unidas, a persistência de formas contemporâneas de escravidão e o primeiro a criar uma política nacional efetiva de libertação de trabalhadores em 1995. O primeiro a lançar um plano integrado de combate ao crime em 2003 e a publicar, periodicamente, um cadastro com os infratores a partir do mesmo ano, a "lista suja". Criou o primeiro pacto empresarial multisetorial contra a escravidão em 2005. E implementou ações pioneiras de repressão e prevenção que se tornaram referência em todo o mundo. Foram mais de 53 mil libertados em fazendas, carvoarias, oficinas de costura, canteiros de obra, entre outros empreendimentos.

Mas vem enfrentando dificuldades para levar adiante a política. Por exemplo, com ataques a auditores fiscais do trabalho e procuradores do trabalho, dificuldades operacionais causadas pela falta de recursos, além das tentativas de mudar o conceito e acabar com a "lista suja".

Post atualizado às 22h57 do dia 30/07/2019 para inclusão de informações.

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.