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Leonardo Sakamoto

Banco é condenado por emprestar a empregador na "lista suja" da escravidão

Leonardo Sakamoto

13/08/2019 19h55

Fiscalização resgata trabalhadores em situação análoga à de escravo no Pará. Foto: Leonardo Sakamoto

O Banco da Amazônia foi condenado a pagar R$ 200 mil de dano moral coletivo por conceder crédito rural, em uma agência em Santa Inês (MA), a um empregador relacionado no cadastro de empregadores que mantiveram trabalhadores em condições análogas à de escravo, a chamada "lista suja". À decisão da 5a Vara do Trabalho de São Luís, no Maranhão, cabe recurso.

A ação civil pública movida pelo Ministério Público do Trabalho usa como referência a resolução do Conselho Monetário Nacional número 3876, de 22 de junho de 2010, assinada pelo então presidente do Banco Central, Henrique Meirelles.

Através dela, "fica vedada às instituições financeiras integrantes do Sistema Nacional de Crédito Rural a contratação ou renovação, ao amparo de recursos de qualquer fonte, de operação de crédito rural, inclusive a prestação de garantias, bem como a operação de arrendamento mercantil no segmento rural, a pessoas físicas e jurídicas inscritas no cadastro de empregadores que mantiveram trabalhadores em condições análogas à de escravo, instituído pelo Ministério do Trabalho e Emprego, em razão de decisão administrativa final relativa ao auto de infração".

O Banco da Amazônia, em nota enviada ao blog através de sua assessoria de comunicação, afirma que "causou espanto a condenação". Disse que o banco "observa todas as disposições legais concernentes à concessão de crédito, razão pela qual jamais financiará atividades que contrariem os direitos e garantias asseguradas na Constituição, em especial no que toca a chaga ainda persistente do trabalho escravo". E "classifica como absurda a decisão proferida pelo juízo e envidará esforços para sua reforma em sede recurso junto ao tribunal".

De acordo com a procuradora do Trabalho Virgínia de Azevedo Neves, responsável pela ação, houve uma audiência com representantes do banco para a realização de um acordo, mas diante da rejeição da proposta, a ação foi ajuizada em novembro de 2017. Nela, a instituição pedia uma indenização de dano moral no valor de R$ 10 milhões e fixava o mesmo valor para o caso de novo descumprimento.

O Banco da Amazônia afirma, em nota, que "o Ministério Público do Trabalho equivoca-se ao afirmar que o banco estaria financiando trabalho escravo, visto que no caso posto não se tratou de renovação crédito/financiamento, mas sim renegociação de débito, ocorrida em 2012 para quitação de operação garantida por Cédula de Crédito Rural Hipotecária emitida pelo devedor em 2004, antes mesmo da edição da Resolução 3.876/2010".

Também diz que "a renegociação do débito teve como objetivo estabelecer forma e prazo para o pagamento da última parcela do débito que estava em atraso, ou seja, não se tratava de nova contratação, mas sim o mecanismo lógico e claro de qualquer credor para receber de seu devedor, mesmo porque este direito é assegurado ao devedor nos termos da Súmula 298 do STJ." E que "a Resolução não pode ter seus efeitos projetados a situações passadas, muito menos, impede que o Banco receba valores que foram concedidos a título de financiamento em anos anteriores".

Em sua sentença, o juiz Paulo Fernando da Silva Santos Júnior afirmou que o contrato apresentava condições distintas do anterior e, portanto, caracterizava-se como nova operação de crédito. "A alegação de que o cliente do réu apenas buscou regularizar obrigações oriundas de operação comercial anteriormente contratada não confere ao banco reclamado permissão para entabular nova operação de crédito que possui parâmetros divergentes daqueles originalmente estabelecidos com o seu cliente, considerando o aspecto impeditivo da sua inserção em lista de empregadores."

O juiz decidiu que o banco deve abster-se de contratar ou renovar operações de crédito rural, inclusive a prestação de garantias, bem como a operação de arrendamento mercantil no segmento rural, com pessoas físicas e jurídicas inscritas na "lista suja". Além da condenação de R$ 200 mil, decidiu que, para cada descumprimento, haverá multa de R$ 50 mil. Prolatada no início do julho, a decisão foi publicizada nesta terça (13) pelo MPT, que também deve recorrer do valor do dano moral.

"Existe absurdo maior que uma instituição financiar alguém que usa trabalho escravo? Isso é algo intolerável e imoral, que não pode ser financiado pelos setores público e privado", afirma a procuradora do Virgínia Neves. "A decisão é importante porque se você não financia uma atividade, ela encontra problemas para continuar se desenvolvendo de uma forma errada. Mas também é importante neste momento em que aparece quem coloque em dúvida a existência de trabalho escravo no Brasil. Quando o Estado, através do Conselho Monetário Nacional e da Justiça, confirma isso, reforça-se a política de combate a esse crime."

Outras ações que denunciam bancos por conceder crédito 

A ação movida pelo MPT do Maranhão usou subsídios enviados pelo Ministério Público do Trabalho, em Araraquara (SP). O procurador Rafael Gomes, responsável pelo maior acordo firmado em um caso de escravidão contemporânea, em que Odebrecht desembolsou R$ 30 milhões, tem coordenado os esforços dentro do MPT sobre o tema do financiamento do trabalho escravo. Ele e outros procuradores moveram outras ações contra sete bancos privados e públicos (Banco do Brasil, Caixa, Itaú, Santander, BTG Pactual, Bradesco e Safra) por descumprimento de outra resolução do CMN (a de número 4327/2014, mais ampla que anterior, que trata da responsabilidade socioambiental das instituições financeiras), também por crédito a quem se utilizou de trabalho escravo. Abaixo, uma breve entrevista com ele:

Qual o motivo que levou vocês a moverem essas ações?

Se você acessa o sites dos sete bancos, há relatórios anuais, políticas, normativas internas, todos dizem que é o risco socioambiental é significativo. Ignorar isso, portanto, é um risco para a sociedade e para os negócios dos bancos. Desconsiderar o risco pode redundar em prejuízo para o banco, por exemplo, o risco de inadimplência. Mas o que os bancos não fazem o que dizem. Há um abismo entre o discurso e prática. No dia a dia, muito pouco é efeito para identificar, evitar e sanar os riscos.

Mas os bancos não dizem que estabelecem compromissos com os clientes sobre o assunto?

Há bancos que dizem que inserem cláusulas socioambientais, por exemplo, para um cliente não se envolver com trabalho escravo. E descobrimos, ao solicitar os contratos, que eles não têm essa clausula. E isso de uma forma deliberada e intencional, não por acidente. Não se faz nada para o cliente assumir um dever contratual jurídico perante o assunto. Eles inserem uma declaração, em que o cliente apenas diz que não usa trabalho escravo ou trabalho infantil. No caso de corrupção e lavagem de dinheiro, a cláusula é diferente e obriga a declarar e se comprometer. O Banco do Brasil, por exemplo, diz que exige essa obrigação, mas não apresentou exemplos de contrato. Os únicos casos que bancos conseguem demonstrar que fecharam contratos com obrigações socioambientais dos clientes são os que as instituições atuaram como intermediárias de recursos de um financiamento do BNDES [Banco Nacional para o Desenvolvimento Econômico e Social]. Quando envolve uma política própria, não enviaram comprovações.

Qual o impacto dessa lacuna para a sociedade?

Alguns bancos entregaram trocas de e-mail. É interessante ver como o setor socioambiental tenta apresentar a importância da questão dos riscos e como isso é negado. Vale lembrar que alguns bancos não têm nem um setor especifico. A Caixa disse que tem milhares de laudos, mas não apresentou nenhum. Em um caso envolvendo esse banco, um laudo dizia que o cliente afirmou que não tinha nenhum envolvimento. E descobriu-se que ele mentiu para o banco. Mas ainda assim a conclusão foi pela admissibilidade do credito. Um impacto imediato é o obstáculo para se implementar a política pública para a erradicação do trabalho escravo. Você detecta casos de continuidades de fornecimento de crédito sem condicionantes sem garantias de regularização. O que é um poderoso instrumento para a continuidade da atividade econômica da mesma forma que ela sempre ocorreu. E com um agravante: isso ocorre às escondidas da sociedade. O sigilo bancário torna possível a bancos adotarem um discurso de sustentabilidade, com avaliações positivas em rankings e, ao mesmo tempo, adotam um pratica oposta a essa, chegando ao ponto de tomar uma decisão de crédito que vai vincular o banco a trabalho escravo.

O que está sendo demandado dos bancos nessa ação?

O cumprimento das resoluções do Banco Central e reelaborar suas políticas de responsabilidade socioambiental. Muitas das políticas são, na verdade, peças de marketing. Frases que são mensagem de marketing, mas não diretrizes, nem orientações. Ações para efetivamente identificar e monitorar o comportamento do cliente pós-concessão do crédito. A única coisa que é feita por parte deles é observar e consultar a "lista suja" do trabalho escravo. Mas não entregaram casos comprovados com relação à consequência disso com o crédito. Foram identificados ao menos três bancos que concederam crédito para quem estava na "lista suja" e que não tomaram nenhuma ação.

Responsabilidade socioambiental, bem como os riscos, não se esgotam com o trabalho escravo. Há mortes em série e adoecimentos em massa de trabalhadores por descumprimento de normas de saúde e segurança. No trabalho escravo, os trabalhadores continuam vivos, mas em outras ocorrências, não. Isso deveria ser considerado também para fins de uma política socioambiental séria. Trabalho infantil também é incluído por esses bancos como uma questão séria para eles, mas não buscam ativamente descobrir ocorrências. Outros pontos do nosso pedido é efetuar a capacitação de empregados sobre o tema. Em parte desses bancos, não há nem a menção a trabalho escravo e infantil, quanto mais ações para detectar sinais.

Quais são os próximos passos?

São sete ações, uma para cada banco. O assunto é o mesmo, mas a forma de descumprimento de cada banco é especifica. Cada ação teve um trabalho diferente porque cada banco possui sua politica, procedimentos, peculiaridades. Cada um descumpre de sua forma. O MPT apresentou uma proposta de acordo e os sete bancos e a Febraban [Federação Brasileira de Bancos] apresentou uma contraproposta no qual previam, a título de regularização, realizar bem menos do que eles dizem que fazem. Isso é um ato falho, a contraproposta é sinal do que eles já fazem. Eles queriam negar credito rural para a "lista suja", para os recursos do BNDES. Se fosse com o setor de responsabilidade socioambiental de cada banco, haveria acordo. Mas quando chega a hora de chegar a um acordo, outros departamentos tomam a decisão e o acordo não sai.

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.