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Leonardo Sakamoto

“Chegamos só para declarar óbito", diz socorrista após alterações no Samu

Leonardo Sakamoto

17/08/2019 04h26

Ciclista que esperou 40 minutos por ambulância após acidente em São Paulo. Imagem: Reprodução/TV Globo.

"Já saí de uma região para atender parada cardiorrespiratória no extremo de outra região. Por mais que a gente invista em manobras de reanimação, não somos deuses para superar mais de uma hora de parada sem atendimento. Para a equipe é muito desolador demorar 20, 30 minutos para chegar sabendo que, no ano passado, havia uma base com uma ambulância UTI a menos de cinco minutos do local daquela ocorrência. Nesses casos, estamos chegando só para declarar o óbito."

O relato é de um médico socorrista do município de São Paulo. O blog ouviu profissionais que estão perdendo pacientes porque não conseguem chegar a tempo. Eles atribuem a situação à reestruturação dos locais de prontidão dessas viaturas, que deixaram suas bases originais e se conectaram a equipamentos de saúde existentes, o que estaria dificultando a celeridade no atendimento a casos graves. E à diminuição de 14 para dez do número de SAVs (Suportes Avançados de Vida), ambulâncias que funcionam como UTIs móveis e contam com equipes formadas por médico, enfermeiro e condutor.

A questão insere-se no projeto de descentralização do Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (Samu), que vem sendo tocado pela Secretaria Municipal de Saúde desde fevereiro. As bases das ambulâncias exclusivas para esse serviço contavam com equipes esperando os chamados e espaço para estoque de material, limpeza de equipamentos e descanso dos profissionais. A Prefeitura desmobilizou as 58 bases antigas e alocou as equipes em 72 novos postos, junto aos serviços de saúde existentes – como hospitais, AMAs, UBSs, entre outros, que cederam espaço em suas instalações para os socorristas.

Em posicionamento enviado ao blog, a secretaria afirmou que "o objetivo da integração é que a administração tenha maior controle gerencial sobre as equipes do Samu" e que este seria o motivo principal das reações negativas à mudança. "Agora os profissionais do Samu não são mais um corpo isolado, mas fazem parte da estrutura da saúde. Com o tempo, isso vai proporcionar a diminuição no tempo de intervalo entre um atendimento e outro. O que significa mais equipes prontas para atender aos chamados", afirma. "A tese de que a descentralização piorou o serviço é falsa."

As equipes avançadas do Samu, dirigindo UTIs móveis, com médico, enfermeiro e condutor, são apenas dez. As bases Panambi e Interlagos foram fundidas em uma só, no Hospital do Campo Limpo. Barra Funda e Jardim Sarah se fundiram na Cidade Universitária. Jabaquara e Tribunal de Contas do Município ficaram no TCM. Na Zona Leste, a última fica em Itaquera. Isso quer dizer que uma parada cardíaca na Cidade Tiradentes pode levar muito tempo para a chegada de um médico. Na Zona Sul, a última é a do Campo Limpo – ou seja, chegar ao bairro de Engenheiro Marsilac a tempo de um emergência é uma ilusão. Mesmo o Centro, que tem maior concentração populacional, ficou com apenas uma SAV, na Santa Cecília. Se essa ambulância estiver empenhada numa parada cardiorrespiratória na Liberdade e alguém tiver um infarto no Bom Retiro, dificilmente será atendido por uma ambulância avançada. Completam a lista as bases no Tatuapé, PAT Band, Mandaqui, Pirituba e Santana.

"Antes, eu teria chegado a tempo"

"Durante meu plantão, aconteceu uma tentativa de suicídio. E como a viatura da região estava ocupada e a minha, disponível, começamos a nos deslocar para atender", afirmou outro socorrista ao blog. "A equipe básica já estava no local, mas nossa equipe, com médico, não conseguiu chegar. Quando já tinha se passado meia hora, a equipe do Corpo de Bombeiros, que também contava com médico, chegou, mas o paciente já havia entrado em óbito. Esse é um dos problemas de ter base que não está em vias rápidas de acesso. Se fosse na organização anterior, na minha base original, eu teria chegado a tempo."

Reportagem de Alex Tajra e Beatriz Montesanti, do UOL, de 9 de julho, trouxe dados obtidos através da Lei de Acesso à Informação apontando que o tempo de atendimento de ambulâncias aumentou e o número de chamadas diminuiu, comparando-se janeiro a maio de 2019 com o mesmo período de 2018. Em fevereiro deste ano, o tempo foi de 79 minutos. No ano passado, nesse mesmo mês, 69 minutos.

Base desativada do Samu, ocupada por uma escola de samba. Foto: Artur Rodrigues/Folhapress

A Secretaria Municipal de Saúde diz que o processo de descentralização ainda está em curso, motivo pelo qual não é possível falar de momentos antes de depois. E que apesar dos resultados poderem ser "melhor avaliados nos próximos meses", os números de maio, julho e julho indicam um aumento de solicitações atendidas em relação aos meses anteriores – não apresentando, contudo, os dados para comparação. E que o tempo médio para casos que ela chamou de "alta prioridade", em maio e junho, foi de 21 minutos.

Um outro médico que atua no Samu desafaba: "A gente se empenha, mas não consegue chegar em tempo hábil. Algumas vezes, chegamos atrasados no chamado não por que a equipe não queria e não estava disposta. Nossa missão é salvar vidas e, como médico, nada é mais importante que isso. As bases devem estar onde as ocorrências estão, ou seja, dentro do 'mapa de calor' e não dentro de AMAs, UBSs, como tem acontecido. Porque a gente sabe que as pessoas moram perto de AMAs e UBSs, mas não é necessariamente onde as ocorrências acontecem".

De acordo com Gerson Salvador, diretor do Sindicato dos Médicos de São Paulo, a Prefeitura afirmou que a descentralização seria boa, pois aumentaria os pontos de cobertura e facilitaria o atendimento. Na prática, segundo ele, retirou-se bases de locais em que socorristas saíam mais rapidamente e, agora, parte foi alocada em salas de hospitais e postos de saúde, fazendo com a equipe leve mais tempo para sair do prédio e enfrente mais trânsito para atender o chamado. "Não foi levado em consideração o tempo-resposta", explica.

Tempo de espera

O caso foi levado ao Ministério Público de São Paulo e, a partir daí, houve reuniões com a Prefeitura e sindicatos. Visitas foram feitas a pontos de assistência do Samu para verificar as condições e um relatório produzido pelo Sindicato dos Trabalhadores na Administração Pública e Autarquias do Município de São Paulo.

Em metade dos casos, segundo o documento, as salas onde ficam as equipes se localizam muito distantes das ambulâncias e nem todas as ambulâncias funcionam ininterruptamente. Outros 43% dos pontos não permitem a saída rápida da ambulância. Ainda de acordo com o relatório, 90% dos pontos não têm locais para a adequada higienização das ambulâncias, 58% não possuem local para a desinfecção de equipamentos e 73% estão sem área coberta para as ambulâncias, expondo-as a chuvas e altas temperaturas. "A mudança não melhorou a situação para a população, nem para os profissionais", afirma Gerson.

De acordo com os socorristas ouvidos pelo blog, a escala de médicos também não está completa, principalmente nos finais de semana. E se não há médico, não tem atendimento avançado. Segundo eles, se um médico sai de férias ou de licença, não existe esquema de folguista para aquela vaga. E o que fazer se não há SAV? A equipe mais próxima é deslocada para cobrir a área. Se Itaquera fica sem, o Tatuapé torna-se responsável pela sua área e todo o resto da Zona Leste. Se o Campo Limpo está sem médico, toda a Zona Sul acaba descoberta de atendimento avançado.

A Secretaria Municipal de Saúde defende que o processo de reestruturação sofreu "uma resistência injusta por parte de alguns sindicatos e de parte dos trabalhadores" que seriam contrários à mudança porque ela significou perda de sua autonomia. E afirma que não podia admitir, como empregador, que uma equipe do SAMU fizesse três atendimentos em um turno de 12 horas ou que faltas nas escalas diárias ficassem acima de 20%. Não detalhou, contudo, quando, onde e com que frequência isso aconteceu.

Socorristas rebatem dizendo que os problemas são de gestão. "Eles colocam a responsabilidade nas equipes, como se a gente retivesse maca nos hospitais de propósito, e não porque os serviços de saúde estivessem sobrecarregados."

Em Itaquera, a ambulância tem que estacionar com o lado do motorista colado na parede. Divulgação/Sindsep

Médicos, auxiliares, enfermeiros e condutores

O blog colheu relatos de servidores públicos sobre outros problemas administrativos que têm contribuído para o aumento do tempo-resposta. Por exemplo, a organização de equipes de médicos, auxiliares, enfermeiros e condutores antes era mais fácil porque estavam lotados em bases próprias. Elas poderiam rapidamente se reorganizar para fazer frente à demanda de atendimentos de acordo com a necessidade – equipes básicas, intermediárias e avançadas. Agora, isso leva tempo, sendo necessário buscar pessoas que estão em diferentes bases para montar as equipes.

Também reclamam dos trotes que levam ambulâncias a atenderem o vazio. Ou comerciantes que mentem sobre chamadas de paradas cardiorrespiratórias apenas para retirar pessoas em situação de rua que estão dormindo em frente ao seu estabelecimento. E, no inverno, com a queda na temperatura, a administração municipal pede para que o sistema de emergência priorize atendimentos de casos relacionados. Contudo, socorristas com os quais este blog conversou lembram que a maioria das pessoas em situação de rua precisam de abrigo e de políticas de atendimento assistencial e não de uma ambulância para transportá-los ao hospital. Muitas vezes chegam ligações de terceiros com chamados de hipotermia, mas ao chegar no local, isso não procedia. Isso poderia ser resolvido com o aumento do atendimento da assistência social, que não precisa de ambulâncias.

Questionada se o projeto de descentralização das bases de atendimento visa à transferência futura de sua administração para Organizações Sociais, a secretaria não respondeu.

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.