Topo

Leonardo Sakamoto

Justiça determina que Doria devolva cartilhas a estudantes da rede pública

Leonardo Sakamoto

10/09/2019 18h12

O governador João Doria Jr. e o prefeito Marcelo Crivella. Foto: Gabriel Paiva / Agência O Globo

A 9a Vara da Fazenda Pública do Tribunal de Justiça de São Paulo determinou, nesta terça (10), que o governador João Doria Jr. suspenda o recolhimento de apostilas destinadas aos alunos do 8o ano do ensino fundamental da rede pública estadual e que devolva o material já recolhido no prazo de 48 horas. De acordo com a decisão, em caráter liminar, o recolhimento de apostilas que já estavam sendo usadas pelos alunos causa danos aos cofres públicos e deve ser revertido. Doria havia manifestado, via redes sociais, sua discordância quanto à visão sobre identidade de gênero e diversidade sexual presente na publicação. 

A decisão atende a uma ação popular ajuizada, também nesta terça, por professores e pesquisadores vinculados a universidades públicas do Estado de São Paulo e ao Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de São Paulo. Eles pediram para a Justiça anular a ordem de Doria de recolhimento das cartilhas. Segundo a ação, houve censura do material didático. À decisão, cabe recurso.

"Um tuíte do governador causa uma cadeia de consequências que deixa 330 mil estudantes sem material didático na rede estadual de ensino durante o bimestre", afirma Fernando Cássio, professor de Políticas Educacionais da UFABC e um dos proponentes da ação. "Por causa de três páginas que desagradam o governador do Estado, ele manda recolher. O ato dele é quase imperial."

A decisão da juíza Paula Fernanda de Souza Vasconcelos Navarro afirmou que "não há notícia, pelo menos em sede de cognição sumária, da publicação do ato administrativo que determinou o recolhimento do material no Diário Oficial do Estado, mas apenas da criação de uma comissão para análise e revisão dos materiais recolhidos. Consta que os motivos do recolhimento foram externados pelo Sr. Governador apenas em publicação de rede social no qual verifica-se menção a 'erro inaceitável no material escolar' e 'não concordamos e nem aceitamos apologia à ideologia de gênero' ".

"Não há dúvidas que a retirada do material suprimiria conteúdo de apoio de todo o bimestre de diversas áreas do conhecimento humano aos alunos do oitavo ano da rede pública, com concreto prejuízo ao aprendizado", afirma Navarro na decisão. "Não se olvide, ainda, que o recolhimento, destruição e nova confecção dos cadernos geram custos expressivos ao erário, sendo evidente a impossibilidade de substituição do material para toda a rede pública de ensino a tempo de utilização ainda no presente semestre."

A Secretaria de Educação do Estado de São Paulo afirmou que foi notificada sobre a decisão do Tribunal de Justiça. "O Governo do Estado de São Paulo recolheu o material em questão por entender que a abordagem 'ninguém nasce homem nem mulher' expressa na apostila é equivocada por não apresentar fundamentação cientifica. Não há censura. A Secretaria de Educação pauta as suas ações por respeito à diversidade e pelo conhecimento adquirido através da ciência e da pesquisa", afirmou a secretaria.

As cartilhas já haviam sido entregues e seriam utilizadas durante o 3º bimestre de 2019. Com isso, por conta de três páginas, estudantes ficaram sem as outras 141 com conteúdos de arte, ciências, educação física, geografia, história, inglês, matemática e português.

Os docentes e pesquisadores da Universidade Federal do ABC, Universidade Federal de São Paulo, Universidade Federal de São Carlos, Universidade de São Paulo e Universidade Estadual de Campinas que ajuizaram a ação contaram com o apoio do Coletivo de Advocacia em Direitos Humanos (CADHu).

"O recolhimento das apostilas é ilegal, inconstitucional e um absurdo. Impõe censura ideológica e deixa mais de 330 mil estudantes sem material de oito disciplinas para o terceiro bimestre", afirma Eloisa Machado de Almeida, professora da FGV Direito SP, coordenadora do núcleo de pesquisa Supremo em Pauta e membro do CADHu.

A suposta "ideologia de gênero" citada por Doria é uma categoria rejeitada pela academia, mas muito utilizada por grupos conservadores que defendem uma visão excludente de identidade e sexualidade.

A ação pedia a concessão de uma liminar para: a) a suspensão do recolhimento das apostilas do programa "SP Faz Escola" destinadas aos alunos do 8º ano do ensino fundamental para todas as disciplinas do 3º bimestre do ano letivo corrente; b) que as apostilas recolhidas pela Secretaria da Educação do Estado de São Paulo não sejam descartadas, destruídas, avariadas ou, de qualquer modo, submetidas a condições que impossibilitem seu uso futuro pelos alunos da rede pública, pelo motivo de tratar de temas relacionados a diversidade sexual e identidade de gênero; c) a devolução das apostilas a todas as escolas e estudantes que tiveram tais materiais recolhidos, de modo que possam ser utilizadas caso os professores considerem pertinente.

De acordo com os proponentes, o governador violou a Constituição Federal, a Base Nacional Comum Curricular e o próprio currículo educacional do Estado de São Paulo – que defende a pluralidade da identidade de gênero e da sexualidade humana e combate o preconceito e a discriminação.

Na última semana, o prefeito do Rio de Janeiro, Marcelo Crivella, transformou um quadrinho com um beijo entre dois rapazes, parte da graphic novel "Vingadores – A Cruzada das Crianças", em uma cruzada contra a Bienal do Livro. Chegou a conseguir uma decisão favorável com Claudio de Mello Tavares, presidente do Tribunal de Justiça, autorizando a administração municipal a recolher material de temática LGBTQ+ na Bienal. Contudo, o presidente do Supremo Tribunal Federal, Dias Toffoli, atendeu a um pedido dos organizadores da feira e cancelou a autorização. Eloísa Machado de Almeida também chamou a decisão da Prefeitura do Rio de censura e diz que o prefeito extrapolou suas funções: "Censura. Não há mais nada o que dizer, ele simplesmente não pode fazer isso".

Post atualizado às 10h25, do dia 11/09/2019, para inclusão de posicionamento do governo do Estado.

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.