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Leonardo Sakamoto

Ao falar de "golpe", Temer pode deixar de se enganar, diz psicanalista

Leonardo Sakamoto

17/09/2019 12h53

"Eu jamais apoiei ou fiz empenho pelo golpe." A declaração do ex-presidente Michel Temer, durante o programa Roda Viva, da TV Cultura, na noite desta segunda (16), surpreendeu por usar a palavra "golpe" ao se referir à cassação do mandato de Dilma Rousseff.

Menos de um minuto depois, ele repetiu – talvez para tirar a dúvida de quem achou ter ouvido errado: "O telefonema do ex-presidente Lula [pedindo para que Temer intercedesse junto ao MDB a fim de salvar o governo] revela, exata e precisamente, que eu não era, digamos, adepto do golpe".

De todas as críticas recebidas, e foram muitas, Temer nunca escondeu a dificuldade de digerir as acusações de "golpista" e "conspirador". Mas a forma com a qual tratou duplamente o tema foi tão fora do comum que fez com que o ex-presidente se tornasse um dos assuntos mais falados no Twitter desta terça.

"Freud dizia que é muito difícil mentir porque o que calamos com os lábios revela-se pelo movimento de nossos dedos. A verdade, expulsa pela porta da frente, hoje, reaparecerá pela janela dos fundos, amanhã." O blog conversou com Christian Dunker, psicanalista e professor titular do Departamento de Psicologia Clínica do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo e um dos coordenadores do Laboratório de Teoria Social, Filosofia e Psicanálise da USP, para ajudar a entender a origem desse "golpe". Pelo menos o verbal, dito e repetido pelo ex-presidente na noite de ontem.

"Atos Falhos – ou parapraxias – envolvem duas condições: a emergência de uma palavra ou expressão no discurso, seguida de uma correção ou negação do ocorrido. Para a psicanálise, isso acontece porque há uma cadeia de pensamentos, inconsciente, que se encontra suprimida e emerge revelando um fragmento da verdade queremos suprimir a nós mesmos", explica Dunker.

"Um processo típico aos atos falhos é que eles tendem a se repetir enquanto seu sentido não for aceito ou negado de modo ainda mais intenso. O uso do termo 'golpe' tantas vezes suprimido, quando chefe de Estado, mas agora usado de modo insistente em uma entrevista é um bom exemplo de como a verdade acaba emergindo em algum momento."

O psicanalista explica que atos falhos são muitas vezes incompreensíveis aos outros, pois dependem de fantasias e recalques de cada um. Mas Freud dá exemplos de atos falhos "transparentes" que são, por assim dizer, sua própria interpretação. Dunker usa como exemplo um diretor que vai dar início a uma sessão, na qual se tratarão de assuntos contrários aos seus interesses, e anuncia: "Declaro encerrada a sessão" ao invés de "Declaro aberta a sessão".

"Essa característica, de que os atos falhos realizam desejos negados pela própria pessoa, parece ter sido anunciada pelo ex-presidente Temer ao dizer que os deputados vão se ajustando à opinião pública, frase que antecede o momento no qual ele chama de 'golpe' o 'impedimento' da presidente Dilma", explica.

De acordo com ele, "atos falhos tornam-se mais proeminentes em situações nas quais o falante parece ter muito domínio da linguagem e conhecimento dos assuntos tratados. Ou seja, o excesso de domínio linguístico torna o ato falho ainda mais revelador do desejo suprimido e da contradição presente entre o que se diz e o que se quer dizer". O ex-presidente é conhecido por adotar a norma culta da língua em espaços coloquiais, recorrendo, inclusive, ao uso de mesóclises.

Ele também faz uma reflexão relevante para nossos tempos: gasta-se muita energia para esconder algo. Portanto, usar certas palavras pode ser libertador. "Poder deixar de se enganar é um trabalho psíquico a menos."

"Jamais apoiei ou fiz empenho pelo golpe", diz Temer

UOL Notícias

Mais Roda Viva

No Roda Viva, o ex-presidente disse acreditar que se a nomeação de Lula como ministro-chefe da Casa Civil tivesse sido concretizada, o impeachment provavelmente não teria acontecido, pois o ex-presidente cuidaria da articulação política do governo e "tinha bom contato com o Congresso".

A nomeação foi barrada pelo ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal, após Sérgio Moro divulgar uma conversa telefônica entre Dilma e Lula obtida através de um grampo ilegal – a interceptação foi feita após o fim do prazo autorizado pela Justiça.

Diálogos divulgados pelo site The Intercept Brasilrevelaram que tanto Moro quanto os procuradores da força tarefa da Lava Jato sabiam da ilegalidade do áudio, mas divulgaram mesmo assim para barrar a nomeação. O impacto dessa revelação pavimentou o caminho para o impeachment.

Outro pacote de diálogos, divulgado pelo Intercept, em parceria com a Folha de S.Paulo, tratava de uma ligação de Lula para Temer, pedindo para que usasse de sua influência junto ao MDB a fim de evitar o impeachment. "O fundamento básico dele foi tentar trazer o PMDB e outros partidos no sentido de negar a possibilidade de impedimento", disse Temer.

Isso reforçou que a preocupação de Lula com a nomeação era salvar o governo e não evitar a sua própria prisão, como defendido pela Lava Jato e pela então oposição em março de 2016.

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.